quinta-feira, 14 de julho de 2011

TdL em Mutirão 8

Entre os dias 16 e 17 de Julho de 2011, acontecerá em Ribeirão Cascalheira - MT, na Prelazia de São Félix do Araguaia, a ROMARIA DOS MÁRTIRES DA CAMINHADA, como tema: TESTEMUNHAS DO REINO. A cada cinco anos, no mês de julho, milhares de pessoas se encontram em Ribeirão Cascalheira - MT, para realizar uma romaria dedicada à memória daqueles que foram mortos defendendo a vida. É um encontro que celebra causas: a indígena, a de negros e negras, mulheres marginalizadas, meninos e meninas de rua, dos operários. Os participantes da caminhada renovam seu compromisso com as lutas pela Vida e pela Justiça.


História da Romaria dos Mártires da Caminhada de Ribeirão Cascalheira- MT


Vindos de um encontro indigenista na área dos Tapirapés, o bispo de São Félix do Araguaia, Dom Pedro Casaldáliga, e o padre jesuíta João Bosco Penido Burnier, coordenador-regional do Conselho Indigenista Missionário (CIMI/MT), desembarcam no povoado com a intenção de participar da festa em homenagem à padroeira. Informados da situação, seguem direto à delegacia para interceder pelas mulheres.
Santana e Margarida são respectivamente a nora e a irmã de um sitiante que, na defesa do próprio filho, atirou e matou um soldado da região. “O soldado tinha prometido matar o filho dele. Quando foi à fazenda cumprir a promessa, o velho já estava esperando e atirou. No dia seguinte, um grupo de dez militares veio atrás”.
Como não encontraram o autor do disparo, levaram presas as duas mulheres e iniciaram uma sessão de tortura para forçá-las a revelar seu paradeiro. “Elas foram forçadas a ajoelhar no milho, em tampas de garrafa, tiveram as unhas e o bico dos seios furado com agulha”, relata outra testemunha do episódio, Eva Domingues da Rocha.
Ao chegar à delegacia, Casaldáliga e Burnier encontram quatro soldados de prontidão. Eva, que mora nas proximidades do local, é capaz de ouvir quando o padre avisa aos militares que a situação será denunciada às autoridades em Cuiabá. A advertência, porém, não surte efeito algum.
Em vez disso, os policiais se mostram cada vez mais tensos e passam a chamar os religiosos de comunistas e subversivos. Dentre eles, quem decide tomar a iniciativa é o soldado Ezy Ramalho Feitosa, que ataca Burnier com um soco e, em seguida, desfere uma coronhada que o lança ao chão.
Depois, um tiro na cabeça. “Ouvimos tudo, sem poder mostrar reação”, lamenta o marido de Eva, José Carlos da Rocha, um dos primeiros a socorrer o padre em agonia. “Foi como se todo o povoado tivesse parado no tempo, sem saber para onde ir”.
A partir daí, o que se seguiu foi uma tentativa desesperada de salvar a vida do missionário. Atendido em condições precárias no próprio povoado, o padre foi levado em um avião monomotor até o Instituto Neurológico de Goiânia (GO), onde morreu, no dia seguinte.
Responsável pelo despertar, sete dias depois, de uma pequena revolução naquele distante povoado do Araguaia , a morte de Burnier ainda hoje é um dos mais fortes símbolos da luta travada entre os grandes grupos econômicos apoiados pela ditadura militar e os milhares de peões, índios e posseiros que insistiam em ficar e construir na região o seu futuro.
Simboliza também o destino de tantos outros que, no mais das vezes de forma anônima, perderam a vida em favor de quem menos podia. Desde a sexta-feira, no mesmo local onde Burnier foi assassinado, estes mártires são lembrados por milhares de romeiros, vindos de todas as partes de Mato Grosso, de vários estados do Brasil e até do exterior.
A Romaria dos Mártires da Caminhada - realizada em julho para facilitar a participação dos visitantes, jovens da cidade apresentaram uma peça teatral que reconstituiu o episódio trágico ocorrido há mais de três décadas.
“Essa é uma história passada de geração em geração em Ribeirão Cascalheira”.

TdL em Mutirão 7

Cidadania da juventude e espiritualidade


Mesmo que haja pessoas que ainda pensam que uma coisa nada tem a ver com a outra, todas as grandes e antigas tradições espirituais procuram ligar o céu com a terra; o caminho de auto-aperfeiçoamento com a missão de construirmos juntos um mundo mais justo e solidário. E a Bíblia chama especialmente as pessoas jovens para esta vocação. No primeiro testamento, quando quis solidificar a experiência do reinado, Deus chamou Davi, o mais jovem dos sete filhos de um pastor, para assumir o encargo de chefiar o povo. Desde então, o povo descobriu que Deus preferia jovens para cumprir as tarefas mais profundas de serviço ao povo. No Novo Testamento, Jesus declarou que o mais novo e o último seria o primeiro no reino de Deus.

De fato, o termo “cidadania” é novo e não aparece nos antigos livros sagrados. Entretanto, o que ele denota e a realidade para a qual aponta está presente sim como dignidade humana e responsabilidade de cada pessoa diante de si mesma, dos outros e do Espírito, Mãe da Vida e fonte de amor universal. O Budismo fala na vocação humana para a Compaixão como grande solidariedade. O Islã em ser dócil à misericórdia divina no trato com todas as criaturas. O Judaísmo fala de amor ao próximo e na construção de uma sociedade justa. O Cristianismo procura desenvolver isso como missão de testemunhar que somos todos e todas cidadãos do reinado divino no mundo.

Os antigos livros da Bíblia insistem que todo ser humano tem uma dignidade real. É como um povo de sacerdotes que representa Deus para o universo e, ao mesmo tempo, eleva toda criação até Deus. Os cristãos herdaram das escrituras judaicas esta noção de cidadania do reino. Jesus viveu em um mundo no qual a maioria do povo pobre era excluída da participação social e política. E como a sociedade era patriarcal, também os jovens eram excluídos. Conforme o evangelho de Mateus, a primeira palavra pública que ele pronuncia é justamente o anúncio de que os empobrecidos serão felizes porque terão plena cidadania no reinado divino neste mundo, os aflitos encontraram conforto, os sem-terra e sem teto possuirão toda a terra como herança (Mt 5). Ele mostrou sua predileção pelos pequenos que no seu tempo significavam os empobrecidos, mas também os jovens.

Muitas vezes na história, estas palavras de Jesus foram lidas e interpretadas como se ele dissessem: “aceitem sofrer e ser marginalizados neste mundo que eu lhes prometo a pátria celeste”. Entretanto, ele ensinou os discípulos e discípulas a pedir não para irem ao reino dos céus (como um grupo religioso que conheço costuma orar: Vamos ao vosso reino) e sim ele insistiu que pedíssemos: “Venha (para cá entre nós) o teu reino”. Esta é a tarefa de toda pessoa que busca uma verdadeira espiritualidade: saber-se cidadão do mundo inteiro, para lá dos nacionalismos e das divisões que se erguem entre nações e raças e, lutar pacificamente para que sejam respeitados os direitos de cidadania de todas as pessoas. Nos anos 70, no Centro-oeste, os lavradores costumavam cantar: “Queremos terra na terra. Já temos terra no céu”. Ser cidadãos do céu como diz Paulo na carta aos filipenses (Fl 3) nos garante o direito de ser plenamente cidadãos\ãs da terra.


Marcelo Barros

TdL em Mutirão 6

Bom viver para todo o mundo

 
Em julho, os povos indígenas da Ameríndia recordam a figura de Bartolomeu de las Casas, o primeiro bispo católico que ainda nos primeiros tempos da colonização assumiu o papel de defensor dos índios contra os conquistadores. Este primeiro bispo de Chiapas, no sul do México, faleceu no dia 17 de julho de 1586. Nos Andes, um encontro de povos indígenas propõe ao mundo que, para salvar o planeta Terra, a humanidade deveria aprender o Bom Viver como regra ética e critério de organização das sociedades. É o Suma Kwasay dos quétchuas, ou o “Suma Kamana” dos aymara. O povo Guarani o chama lekil Kuxlejal, sinônimo de “vida boa”. Significa o que hoje denominamos de “qualidade de vida” e o Evangelho chama de “Vida em plenitude” (Jo 10, 10).

O mundo capitalista sempre prometeu às pessoas a possibilidade de se viver melhor e fala em otimização da produção e do trabalho. Os povos tradicionais não querem apenas isso. Almejam transformar profundamente o modo de viver. Priorizam a sacralidade da vida humana e de todos os seres vivos. Compreendem isso como compromisso de viver de modo sadio, feliz e harmonioso consigo mesmo, com os outros humanos e com todos os seres vivos. Para os povos tradicionais, não é um ideal irrealizável e sim uma utopia possível que temos de construir.

Antigamente, nas comunidades andinas, o bom viver era um método de vida e espiritualidade social. Com a invasão da cultura individualista e do consumo, para que alcancemos novamente este ideal, precisamos nos apoiar em um conjunto de princípios, critérios e iniciativas como alternativas ao tipo de desenvolvimento que privilegia o econômico, sem levar em conta a dimensão humana, social e ecológica. A Bolívia e o Equador inscreveram o bom viver nas suas constituições, como objetivo do Estado. Nestes países, inúmeras conferências e congressos procuram aprofundar um conhecimento cultural das diversas tradições indígenas e garantir uma conduta ética e espiritual que fundamente uma sociedade dirigida à realização de cada pessoa na comunidade e, a partir do cuidado social, garanta o equilíbrio nas relações entre as pessoas, povos, assim como com a Mãe Terra e toda a natureza.

Na sociedade capitalista, o desenvolvimento dos países era calculado pelo Produto Interno Bruto (PIB). Na década de 90, o economista indiano Amartya Sem propôs como critério o “Índice de Desenvolvimento Humano”. Isso significa levar em conta não só o aspecto econômico, mas a saúde, educação e liberdade social de cada povo. Já em 1970, no Bustão, país pouco conhecido da Ásia, o príncipe Jigme Singye Wangchuck propôs como critério de classificação, não a produção econômica e o desenvolvimento social, mas o “Índice de Felicidade interna”, qualidade de vida digna, baseada nos princípios espirituais do Budismo. A questão é como avaliar o grau de felicidade de uma comunidade e das pessoas na sociedade. Uma ONG inglesa (Friends of the Earth) publicou uma série de itens para medir o grau de felicidade coletiva. Alguns destes elementos são: saúde, estabilidade social, possibilidade de vida familiar, condições saudáveis de trabalho, liberdade e lazer. No começo deste século, esta ONG elaborou uma pesquisa na qual, segmentos da população de vários países responderam a um questionário. Além disso, estas famílias foram visitadas por voluntários que também se pronunciaram sobre as condições de vida nestes países. Os povos que se destacaram pelo índice de felicidade foram pequenos países como Costa Rica, estado desmilitarizado e relativamente pobre, a Colômbia depois da pacificação de sua guerra civil e mesmo Cuba, vítima do bloqueio americano. O povo brasileiro foi considerado dos mais felizes, apesar de tantos problemas sociais e políticos que enfrentamos. Nenhum país rico do G8 aparece na lista dos mais felizes. Os Estados Unidos ocupam o posto 150, igual ao Zimbabue, país africano pobre e ainda imerso em conflitos raciais.

Apesar de que existem grupos religiosos capitalistas que fazem do lucro e da prosperidade econômica um sinal de bênção divina, as grandes tradições espirituais sempre chamaram as pessoas a valorizar mais o ser do que o ter. No evangelho de Mateus, em seu primeiro discurso público, Jesus proclama oito bênçãos, bem-aventuranças ou situações de felicidade (Mt 5, 1- 12) e no evangelho de João, ele afirma: “Eu vim ao mundo para que todas as pessoas tenham vida e vida em plenitude” (Jo 10, 10).

Marcelo Barros

TdL em Mutirão 5

O TREM DAS CEB’S


De algum tempo para cá, tornou-se comum falar de crise das Pastorais Sociais, dos Movimentos Populares e das Comunidades Eclesiais de Base (CEB’s). Crise que, em grau considerável, é ampliada às esquerdas em geral. Semelhante crise estaria vinculada, entre outros fatores, à perplexidade que, desde a eleição de Luiz Inácio Lula da Silva em 2002, dominou não poucos agentes e lideranças das organizações da sociedade civil quanto ao desempenho do governo capitaneado pelos caciques do Partido dos Trabalhadores. O projeto popular teria sido abortado com os ajustes da própria vitória de Lula, diluindo-se num marasmo indefinido de apatia, falta de estímulo e descontentamento.

No caso das CEB’s, entretanto, a crise vem crescendo como cizânia no terreno de uma Instituição milenar que, segundo alguns, volta-se gradativamente para o interior de si mesma, preocupada menos com a “questão social”, tão cara aos principais documentos da Doutrina Social da Igreja, e mais para os problemas de caráter moral e/ou doutrinário, bem como para um espiritualismo estéril e avesso a qualquer tipo de compromisso social. A exterioridade dessa opção se reveste de um liturgismo fortemente ritualista e rigoroso. Também a preparação do próprio clero, no interior das casas de formação, estaria priorizando a função e a visibilidade do sacerdócio. De acordo com outras vozes, a crítica é ainda mais severa.

Nas últimas décadas estaríamos assistindo, na Igreja Católica, a um retorno “à grande disciplina” (JB Libânio), à sacristia, à concepção de uma rígida hierarquia. Neste caso, tratar-se-ia de uma verdadeira involução frente à postura dos anos de 1960-70, no enfrentamento da ditadura militar. Os chamados movimentos religiosos de matiz espiritualizante, espécie de pentecostalismo católico, avançam nas lacunas deixadas por uma ação social mais incisiva, transformadora, libertadora. Em contrapartida, tanto as CEBS’s quanto a Teologia da Libertação (TdL), teriam encolhido de tamanho, ousadia e visibilidade sociopolítica. Até mesmo a “opção preferencial pelos pobres”, ainda que reconhecida e apoiada pela Santa Sé, pelas cartas encíclicas papais e pelos documentos do Conselho Episcopal Latinoamericano (CELAM), parece sofrer de uma timidez irreconhecível, se levarmos em conta a firmeza, o engajamento e coragem das décadas passadas.

Os direitos humanos e os problemas socioeconômicos e político-culturais teriam passado, assim, a um segundo plano. Num universo cada vez mais marcado pelo pluralismo cultural e religioso, de uma parte, e de progressivo crescimento das Igrejas Pentecostais, de outra, a instituição católica trata de desenhar os contornos de sua identidade. O que a leva, por outro lado, a esforçar-se laboriosamente para uma maior incidência na sociedade civil e política. Aqui não faltam os extremistas para preconizar, alto e bom som, o surgimento de uma nova cristandade.

Neste quadro, convido os leitores a uma viagem no trem das CEB’s, metáfora que acompanha sua caminhada ao longo do percurso, cujos vagões representam, cada um, os grandes encontros nacionais e/ou regionais. No decurso de nossa viagem, somos igualmente convidados a uma parada para reflexão em cinco estações: origem, luz, projeto popular, vitória e esperança. Evidente que, através das janelas da composição, o horizonte se alargará para um panorama mais vasto, levando em consideração o contexto da sociedade moderna ou pós-moderna.



1. Estação da Origem

Na primeira estação, detemo-nos para refletir sobre a origem das Comunidades Eclesiais de Base. A meu ver, desde o início elas se erguem sobre quatro pés: o clamor dos oprimidos na América Latina, de maneira particular sob o peso das ditaduras militares, que leva a uma nova práxis cristã; a força da Palavra de Deus que joga nova luz sobre essa situação de pobreza e opressão, com a releitura do Livro do Êxodo e dos profetas, da prática de Jesus nos Evangelhos e de outras passagens bíblicas; o impulso dos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II, em especial a nova eclesiologia da Constituição Dogmática sobre a Igreja, a Lumem Getium, e abertura aos desafios modernos da Constituição Pastoral sobre a Igreja no Mundo de Hoje, a Gaudium et Spes; por fim, a reflexão crítica da Teologia da Libertação, como reinterpretação da prática libertadora. Como pano de fundo está a concepção de Igreja, não mais hierárquica, e sim como Povo de Deus. A pirâmide medieval desfaz-se em um círculo de igualdade. Nele, Cristo ao centro, toda a Igreja deve tornar-se ministerial e seus vários serviços não são maiores ou menores em grau, mas apenas diferentes. Evidente que há um longo caminho a percorrer para atingir esse ideal.

Nesse esquema, é notória a noção de círculo hermenêutico: a realidade iluminada pela Palavra de Deus desencadeia uma prática cristã de natureza transformadora; esta, retroagindo sobre os livros bíblicos, provoca uma nova interpretação, tanto de seu conteúdo como de seu contexto histórico; a reinterpretação dos textos sagrados, por sua vez, incide sobre a práxis libertadora, levando a comunidade a uma ação cada vez mais comprometida. O círculo cresce de forma dinâmica, dialética e espiral, conduzindo a uma ampliação de horizontes. Alargam-se, de um lado, as possibilidades de uma leitura contextualizada dos livros do Antigo e Novo Testamento e, de outro, as potencialidades de mudança nas diferentes ações sociais e políticas.

A esta altura, vale um alerta. Muitas vezes se pergunta como está a Teologia da Libertação. Como diria Gustavo Gutierrez (autor do livro Teologia da Libertação), o que importa não é tanto a teologia, e sim a libertação. De fato, a ação libertadora é que desencadeia a dialética do círculo virtuoso acima descrito. A teologia é um discurso segundo e isto em duplo sentido: por uma parte, ela deve contar com os instrumentos teóricos das ciências sociais, que a ajudam a ler o complexo pergaminho da história; por outra, ela é chamada a refletir a partir da nova prática dos cristãos frente aos desafios da realidade. Sobre esse duplo terreno, a teologia busca na Palavra de Deus, na Doutrina Social da Igreja e na tradição teológica os elementos para entender e, ao mesmo tempo, iluminar essa prática. Resulta, com isso, uma reiterada potencialização da ação transformadora. E esta, por seu turno, também interpela e amplia o raio de conhecimento teórico da própria teologia.

Nem precisaria acrescentar que semelhante prática cristã foi grandemente influenciada pelo método de alfabetização e educação de Paulo Freire. Também este parte da realidade, dela retira palavras-chaves do cotidiano das pessoas para desencadear o processo de aprendizado, que é igualmente o processo de libertação sociopolítica. Fundindo ambas as práticas, poder-se-ia parafrasear Paulo Freire dizendo que ninguém educa ninguém e tampouco liberta ninguém; as pessoas se educam e se libertam mutuamente. É preciso reconhecer que livros como Pedagogia do Oprimido e Educação para a Liberdade, ambos de Paulo Freire, marcaram decisivamente as comunidades cristãs que procuravam unir fé e vida.



2. Estação da Luz

É justamente o binômio “fé e vida” que nos leva à segunda estação, luz. A palavra remonta ao túnel escuro das ditaduras militares, seja no Cone Sul, seja nos países bolivarianos, sejam, enfim, na América Central e Caribe. Nesse período sombrio, de perseguição, tortura e morte, as CEB’s representaram uma pequena luz em meio à escuridão. Não poucos agentes e lideranças sociais, políticas e sindicais encontraram abrigo no grande “guarda-chuva” da Igreja Católica. Não toda a instituição, evidentemente, mas em seus setores mais progressistas, afinados quer com a eclesiologia do Concílio Ecumênico Vaticano II e os documentos do CELAM, quer com a crescente produção teórica vinculada à Teologia da Libertação.

Restringindo-nos ao Brasil, um grupo relativamente pequeno de bispos ditos “progressistas” conseguiu elaborar e publicar documentos de um caráter espantosamente profético. Ouvi os clamores do meu povo, originário do nordeste brasileiro, é um texto emblemático a este respeito. Fundamentava-se no capítulo três do Livro do Êxodo e, corajosamente, denunciava as injustiças sociopolíticas e anunciava a necessidade de mudanças urgentes, para a construção de “um novo céu e uma nova terra”. Sem estender em demasiado a lista das figuras mais proeminentes, a reflexão faz emergir os nomes de Dom Hélder Câmara, de Dom Paulo Evaristo Arns, de Dom Pedro Casaldáliga, entre tantos outros.

Mas, da mesma forma que na eclesiologia do Povo de Deus os bispos não constituem toda a Igreja, somam-se ao profetismo deles uma infinidade de sacerdotes, religiosos, religiosas e leigos, os quais contribuíram para o aprofundamento dessa prática libertadora à luz da Palavra de Deus. Frei Tito, Frei Betto e Vladimir Herzog, além de numerosos teólogos, sindicalistas, professores, jornalistas, catequistas e políticos, poderiam encabeçar um desfile de mártires que nos levaria muito longe. Isto para sequer falar dos outros mártires, anônimos e inteiramente desconhecidos. A interação permanente e recíproca entre CEB’s e TDL abriu horizontes mais largos para a participação dos cristãos nas transformações socioeconômicas e políticas. Desnecessário lembrar que a “opção preferencial pelos pobres”, numa fé compromissada com os direitos humanos e a construção de uma nova sociedade, vale dizer o Reino de Deus, ganhou uma relevância inédita e temerária para os “donos do poder”. Fé e vida, termos fortemente entrelaçados e se interpelando mutuamente, representaram a nova aurora da práxis cristã e libertadora.

Ao mesmo tempo refúgio, proteção e luz, a Igreja das CEB’s converte-se em terreno fértil para milhares de iniciativas populares em luta para melhorar as condições reais de vida e trabalho. Tome-se como exemplo a “operação periferia”, na qual o arcebispo Dom Paulo Evaristo, junto com agências co-financiadoras internacionais, ajudou na proliferação de centenas de comunidades pela periferia de São Paulo, então em franco e desordenado crescimento demográfico, devido, particularmente, à forte migração interna do nordeste para o sudeste.



3. Estação do Projeto Popular

O projeto popular para o país constitui nossa terceira estação. Nela, nossa parada será um pouco mais prolongada. Mesmo no interior do regime de exceção, as comunidades cristãs significaram, na década de 1970 e início de 80, um dos igarapés que haveriam de formar o grande rio do projeto alternativo para o Brasil. Elas se juntaram a outras forças vivas e ativas na sociedade brasileira, tais como os movimentos populares, sindicais e estudantis, entre outras organizações não governamentais. Subdividiremos este item em duas partes.

a) Três esboços de projeto

De acordo com alguns analistas políticos, com destaque para José Luiz Fiori, é possível identificar no cenário da política brasileira três projetos mais ou menos distintos. Não são três propostas definidas, explícitas, com fronteiras precisas. Mas três tendências de caráter político e econômico que emergem no decorrer das últimas décadas.

A primeira pode ser chamada de nacional conservadora. Pressupõe as riquezas naturais do Brasil, aliadas à experiência de um povo criativo e trabalhador. Conta com a possibilidade de construir um país autônomo, livre e soberano, mas sem mexer nas estruturas assimétricas e injustiças que datam dos tempos coloniais. Desenvolve um grande parque industrial, para fabricar os produtos até então importados, mas cria leis trabalhistas baseadas na Carta del Lavoro (Itália de Mussolini). Não seria, por exemplo, o projeto do Estado Novo, de Getúlio Vargas e de Juscelino Kubitschek?

A segunda tendência é batizada de nacional popular. Também esta supõe a riqueza do solo e do povo brasileiro, visando construir um país autônomo, livre e soberano. Ela tem raízes na resistência indígena, negra e popular dos séculos passados. Mas nas décadas de 1950 e 1960, ela ganha contornos mais definidos. Exemplos disso são as Ligas Camponesas, o método de educação de Paulo Freire; Brizola e João Goulart, apesar de suas contradições; a universidade brasileira, especialmente com Darcy Ribeiro; o movimento estudantil; a música popular e a arte, e assim por diante. Há uma cara indefinida de projeto popular, de matizes socialistas.

Surge então a terceira tendência, de corte liberal/neoliberal, que com o golpe de 1964, corta a cabeça do “projeto popular”. Os militares atrelam o país ao mercado financeiro internacional e iniciam o processo de endividamento externo. O Brasil torna-se satélite dos países centrais como grande fornecedor de matéria-prima. Também esta tendência tem raízes na época do capitalismo mercantil, com os chamados ciclos econômicos. Além dos militares, serão os presidentes Fernando Collor e Fernando Henrique Cardoso que levarão a cabo o “entreguismo brasileiro” mais descarado, através das privatizações e da abertura ao capital internacional.

b) Projeto popular

No início da década de 1970, o projeto de tendência popular começa novamente a levantar a cabeça. Vários igarapés surgem: comunidades eclesiais de Base (CEB’s), iluminadas pela Teologia da Libertação; movimentos populares, contra a carestia e a favor de outras reivindicações; sindicalismo combativo, movimentos estudantis e a contribuição de “intelectuais orgânicos” (expressão de Gramsci). Estes igarapés convergem para formar um grande rio que, nos primeiros anos de 1980 reúne todas essas águas para fundar a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Partido dos Trabalhadores (PT).

Desde então, assistiremos ao embate político de dois projetos cada vez mais definidos. De um lado, o projeto neoliberal, que aborta o movimento das Diretas Já, e toma as rédeas do poder, ganhando seguidamente as eleições majoritárias; de outro lado, o projeto nacional popular que, desde 1982, inicia a disputa pelo poder a partir dos municípios, depois dos Estados e por fim, em 2002, chega ao Palácio do Planalto com a eleição inédita do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Lula não é um meteoro, ou um aventureiro que aparece do nada. Sua trajetória tem raízes profundas nos movimentos sociais e nas organizações de base das quatro décadas precedentes ao pleito eleitoral que o levou à Presidência.

Se, nos anos de 1980, os movimentos e organizações sociais se consolidam e se fortalecem, nos anos 90, passam a um entrelaçamento inédito de parcerias, ou de redes. Contribuiu para isso as Semanas Sociais Brasileiras, o Grito dos Excluídos, a Campanha Jubileu Sul, a Consulta Popular, O Seminário e Tribunal da Dívida Externa – redes que se ampliam em nível nacional e internacional e que vão desaguar na organização dos Plebiscitos e nas Assembléias Populares. É neste contexto que Lula chega à cadeira presidencial.



4. Estação Vitória

A vitória de Luiz Inácio Lula da Silva, em 2002, esconde uma armadilha. Quando chega ao Planalto Central, três fatores fizeram o novo presidente dar as costas ao projeto popular e contentar-se com a administração do projeto neoliberal. Primeiramente, as expectativas levantadas na população, pela vitória de um presidente operário, estavam muito acima da capacidade organizativa e mobilizadora das forças sociais. Lula é um político nato, tem faro para captar a atmosfera e a correlação das forças em jogo. Em segundo lugar, percebendo essa disparidade entre expectativas e condições reais de ação política, estabelece uma aliança pela governabilidade não com as organizações que o elegeram, mas com os representantes do Brasil “terra de contrastes” (Roger Bastide). Semelhante pacto, num cenário de forças tão desiguais, acaba necessariamente por fortalecer o mais forte. Não se faz aliança entre tubarões e sardinhas. Por fim, vem a famigerada Carta ao Povo Brasileiro, endereçada à população deste país, mas dirigida ao capital financeiro internacional, no sentido de acalmar os ânimos exaltados. Em seu conteúdo, Lula garante manter todos os compromissos, isto é, não haverá calote! Os banqueiros, latifundiários, industriais... Enfim, as classes dominantes podiam dormir tranqüilas.

Em poucas palavras, a coligação liderada pelo PT ganhou o governo, mas não ganhou o Estado. O Estado brasileiro, com seus múltiplos órgãos e instâncias, histórica e estruturalmente mantém-se retrógrado ao extremo e avesso a qualquer tipo de mudança. O governo passa a ignorar essas forças, procura ganhar espaços no cenário internacional e entrega o controle do Banco Central a Henrique Meirelles, um dos grandes pivôs da política neoliberal. Ironia do destino, o governo do PT, criado no berço das organizações sociais, assume a ingrata tarefa de gerenciar a crise do neoliberalismo. Paralelamente a isso, nos eventos dos movimentos e organizações de base começa uma ladainha onde as palavras mais sublinhadas são: desilusão, desencanto, perplexidade, desestímulo, apatia, desmobilização, cooptação, indignação, entre tantas outras. Mais que um projeto de nação, prevalece um projeto de poder.

Para usar uma metáfora de Jean-Claude Guillebaud, se a nave Brasil foi colocada pelos governos anteriores no piloto automático do mercado global, o presidente Lula foi eleito para retomar o piloto manual e tentar uma guinada na direção das reformas básicas e urgentes, aspirações da população de baixa renda. As forças de direita não o permitiram fazer isso. Sobrou ao presidente eleito pouca margem de manobra. Por uma parte, cresciam os lucros do sistema financeiro e desenvolvia-se agronegócio, por outra, o governo procurava distribuir algumas migalhas aos pobres: bolsa-família e bolsa-escola, minha casa minha vida, crédito mais acessível, cotas nas universidades, aumento do salário mínimo, criação de novos empregos, entre outras. Trata-se aqui de políticas públicas ou políticas compensatórias? A pergunta remete a um debate nada ocioso nos dias atuais.



5. Estação Esperança

Paramos, finalmente, na quinta e última estação, a da esperança. Comecemos por retomar a ladainha da crise que se estabelece com a vitória de Lula e seu desempenho como presidente que, a partir da Senzala, alcança as salas da Casa Grande (para usar a consagrada expressão de Gilberto Freire). Seguem-se dois mandatos onde o modelo neoliberal não se altera, apesar de uma fatia um pouco menos magra para a população de baixa renda. Junto com esses anos, acumula-se certa amargura, perplexidade, desilusão, desencanto, indignação, apatia, entre tantos outros sentimentos adversos, explícitos ou implícitos. Os núcleos do PT, os movimentos e pastorais sociais e as organizações de base, para dizer o mínimo, assistem à desintegração do projeto popular. Consciente ou inconscientemente, segue-se, por parte do governo, a cooptação ou neutralização das energias de vanguarda.

a) Crise e encruzilhada

Se esse é o caso, por que estação da esperança? Porque toda crise é ambígua: tem seu lado negativo e seu lado positivo. Primeiro ela nos leva ao berço, ao muro das lamentações, ao “chororô”. Por mais crescidos que sejamos, carregamos uma saudade primordial do colo da mãe. Pelas minhas idas e vindas através do território nacional, entendo que já estamos superando o lado negativo da crise. Pouco a pouco, assamos a seu lado positivo, encaramos os desafios que estão pela frente. Aliás, após levar ao berço, a crise costuma deixar os fracos aí, numa lamentação saudosista e eterna, mas conduz os fortes a uma nova fronteira: é justamente a encruzilhada.

O conceito de encruzilhada é diferente da crise. Ela pressupõe bifurcação de alternativas e necessidade de escolha. Requer tomada de opções. O que nos dias de hoje nos ensina a encruzilhada? O que aprendemos? Basicamente que, além da via parlamentar, existem outras vias para a participação popular no processo político. Não podemos restringir nossa ação a um determinado partido, por mais avançado que seja. Aliás, nos países do ocidente democrático, em geral, a via parlamentar e uma “via para lamentar”! Sempre reconduz os poderosos ao poder, com se este tivesse cadeira cativa para uma minoria rica e dominante.

Aprendemos também que, do ponto de vista evangélico, o Reino de Deus não cabe em nenhum projeto político, em nenhuma formação social e histórica. Não cabe nos limites estreitos de uma classe, de uma coligação partidária de um projeto de nação. Menos ainda na inteligência, imaginação ou razão humana. Tampouco cabe nas estruturas da Igreja institucional. “O vento sopra onde quer”, diz o Evangelho. O Reino é uma instância evangélica que sempre nos interpela e nos chama a dar um passo à frente. O Espírito irrompe no mundo a partir do futuro, reabrindo toda e qualquer possibilidade histórica. Por isso é que cada ponto de chegada é um novo ponto de partida. “Deus não gosta dos que já chegaram” – diz o poeta – “nem dos que têm medo de partir; Deus gosta dos que estão a caminho”.

b) A semente

Convém concluir com uma das metáforas mais ricas de Jesus, a da semente. Esta contém várias lições para os dias que correm. Antes de tudo, encruzilhada é como um fosso na história, tempo de semear, não tanto de colher. E quem semeia nem sempre é quem colhe. Ao contrário, na imensa maioria dos casos, semeamos para que outros colham. Nós que estamos nesta sala já fizemos nossa colheita. Nossa tarefa agora é lançar a semente na terra.

Outra lição da semente. Lenta mas gradualmente, ela matura no silêncio escuro úmido e oculto da terra. Invisível e imperceptivelmente, cresce para baixo, antes de erguer-se para o sol, a luz e o céu. Cria raízes antes de tornar-se árvore e produzir folhas, flores e frutos. O mesmo ocorre com o projeto popular: primeiro ele mergulha suas raízes nas dores e esperanças, lutas e sonhos do povo, especialmente dos setores mais fragilizados da população, depois se ergue para o alto. Como a espiga, a flor e o edifício, ele se levanta a partir do chão. Mudança alguma vem de cima; antes, brota do solo da história, por mais árido que ele seja.

E aqui emerge outra lição da semente. Qualquer gesto, por menor e mais insignificante que seja, é fator de mudança na história. Um olhar, um sorriso, uma palavra, um toque, uma visita, uma presença, um telefonema, um e-mail... São gestos que custam muito pouco, mas fazem um bem que as palavras não bastam para definir. Diz o evangelista Lucas que Jesus passou pela vida “fazendo o bem”. Mas quando, na quinta-feira santa, às portas da morte, se depara diante do Pai, tem as mãos vazias. Ao lado, estão doze “gatos pingados” que logo o haverão de abandonar, trair, negar e fugir. Mas a semente não fora lançada em vão.

Nenhum gesto solidário se perde na história. Esta não avança de forma linear, mas através de mudanças mínimas e invisíveis, as quais vão acumulando forças para um salto qualitativo. A Revolução Industrial, a Revolução Francesa, o Concílio Vaticano II, a eleição de Lula... Embora em graus e campos distintos, são saltos qualitativos possibilitados por anos, décadas e até séculos de pequenas mudanças. São estas que acumulam as águas de uma represa capazes de gerar a energia suficiente para uma transformação mais substantiva e radical.

Por fim, a semente revela a esperança de que as mudanças não se realizam através de espetáculos. Estes, ao contrário, tendem a naturalizar as assimetrias e injustiças do cotidiano. Basta ver as manchetes da mídia: quando se espetaculariza uma notícia de extrema violência contra a mulher, por exemplo, a tendência do expectador é normalizar e cristalizar a violência diária, feita gota a gota, normalmente intra-familiar. Mas nem por isso menos perniciosa. Os espetáculos são como shows pirotécnicos: com a mesma velocidade que sobem e iluminam, descem e viram cinza. Ninguém garante a felicidade com os sucessos, pois estes são seguidos de freqüentes insucessos. A felicidade se constrói nas pequenas alegrias e doações do dia-a-dia.

No domingo costumamos presenciar algum espetáculo, cultural ou religioso. Mas todo o domingo tem sua segunda-feira, e então descobrimos que a cruz e o sofrimento precedem a ressurreição. Os espetáculos, além disso, nos levam a priorizar a pastoral dos eventos, em detrimento da pastoral do processo. Nada contra os eventos, desde que eles estejam conectados com uma rede capilar de organização de base, como são, de resto, os encontros nacionais de CEB’s. Os eventos, quando desconectados de uma ação responsável e contínua, como diz a própria palavra, nada mais são do que vento.

Pe. Alfredo J. Gonçalves, CS [www.provinciasaopaulo.com]
(Assessoria à Assembleia das CEB’s, Arquidiocese de S. Paulo, 03/07/2011)