quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

TdL em Mutirão 37

O VATICANO II - CINQUENTA ANOS DEPOIS

 
Pelo Pe. Prof. Dr. José Comblin *
In memorian

 
Síntese: Para o Autor, o Vaticano II chegou tarde. Não houve tempo suficiente para implementar seu espírito, porque, logo após seu encerramento, aconteceu a maior revolução cultural do Ocidente e os desafetos do Concílio acusaram-no dos problemas surgidos dessa revolução e foram ouvidos. Por isso, a Igreja não só continuaria tendo dificuldade de adequar sua linguagem segundo os novos tempos, mas, fixando-se em esquemas mentais do passado, até faria o movimento contrário. Assim, por um lado, o Vaticano II ficará conhecido na história como uma tentativa de reformar a Igreja, e, por outro, como um sinal profético, uma voz evangélica, uma chamada para olhar para o futuro - como Medellín, em relação à América Latina, também contestado, é um farol que mostra o caminho.

 
1. Antes do Concílio

 
A maioria dos bispos que chegou ao Concílio Vaticano II não entendia para que tinham sido convocados. não tinham projetos. Pensavam, como os funcionários da Cúria, que o Papa, sozinho, podia decidir tudo, e não era necessário convocar um concílio. Havia, porém, uma minoria muito consciente dos problemas do povo católico, sobretudo nos países intelectual e pastoralmente mais desenvolvidos. Lá, tinham experimentado episódios dramáticos ocasionados da oposição entre as preocupações dos sacerdotes mais inseridos no mundo contemporâneo e a administração vaticana. Sabiam o que tinham sofrido sob o pontificado de Pio XII, que se opunha a todas as reformas, tão esperadas por muitos. Todos os que buscavam uma inserção da Igreja no mundo contemporâneo, com seu desenvolvimento das ciências, sua tecnologia e nova economia, bem como seu espírito democrático, se sentiam reprimidos. Havia, pois, uma elite de bispos e cardeais que estavam vem conscientes das reformas que percebiam como necessárias e, então, decidiram aproveitar a oportunidade oferecida providencialmente por João XXIII. A Cúria não aceitava as ideias do novo Papa, e muitos bispos curiais estavam desconcertados, uma vez que o modelo de Papa de João XXIII era muito diferente do modelo dos Papas Pios, modelo considerado obrigatório desde Pio IX.

As comissões preparatórias do Concílio eram claramente conservadoras, e, por isso, no dia da abertura do Concílio, as perspectivas dos teológos e peritos trazidos pelos bispos mais conscientes eram bastante pessimistas. Porém, o discurso de abertura de João XXIII rompeu decididamente com a tradição dos Papas anteriores. João XXIII anunciou que o Concílio não se encontrava reunido para fazer novas condenações de heresias, como era de praxe. Disse que se tratava de apresentar ao mundo uma outra imagem de Igreja, imagem que a tornaria mais compreensível aos contemporâneos. A maioria dos bispos não entendeu nada e pensou que o Papa não tinha dito nada, porque não tinha mencionado nenhuma heresia. Para o Papa, não se tratava de aumentar o número de dogmas, mas de falar ao mundo moderno de tal modo que ele pudesse entender. Uma minoria entendeu a mensagem e percebeu que teria o apoio do Papa em sua luta contra a Cúria.

A Cúria tinha uma estratégia. Havia um jeito de anular o Concílio. As comissões tinham preparado documentos sobre todos os assuntos anunciados. Todos os documentos eram conservadores e não permitiam nenhuma mudança significativa em matéria de pastoral. Estes documentos seriam entregues às comissões conciliares, que os aprovariam, e o Concílio seria concluído em poucas semanas, com documentos inofensivos, que não mudariam nada. O importante era fazer uma lista de comissões com bispos conservadores e explicar ao Concílio que o mais prático seria aceitar as listas já preparadas pela Cúria, uma vez que os bispos da assembléia não se conheciam.

O primeiro que descobriu esta estratégia foi Manuel Larraín, bispo de Talca, no Chile, e presidente do CELAM. Ele, com Helder Câmara - eram amigos íntimos, acostumados a trabalhar juntos - foram avisar os cabeças do episcopado reformador. A Cúria tinha preparado uma lista de membros de comissões, escolhidos de tal maneira que se sabia que aprovariam os textos curiais sem dificuldade. Tratava-se, então, de rechaçar as listas preparadas pela Cúria e pedir que comissões fossem eleitas pelo próprio Concílio. Os líderes - Doepfer, de Munique, na Alemanha; Liénart, de Lille, na França; Suenens, de Malinas, na Bélgica; Montini, de Milão, na Itália, e mais alguns - tomaram a palavra e pediram que o próprio Concílio nomeasse os membros das comissões, o que foi aprovado por aclamação.

A conclusão foi que as novas comissões rechaçaram todos os documentos preparados pelas comissões preparatórias, o que foi uma afirmação do episcopado em relação à Cúria romana. O Papa estava feliz. Claro que, em poucas horas, Manuel Larraín e Helder Câmara fizeram listas de bispos latino-americanos que podiam integrar as comissões, e outros fizeram o mesmo em relação a outros Continentes, também porque Manuel Larraín tinha muitos contatos mundo afora. Desde o início, ficou claro que o Concílio travaria uma batalha após outra contra a Cúria romana. O Papa não tinha força para mudar a Cúria. Até hoje, os Papas são prisioneiros da Cúria, que teoricamente depende deles. A administração é mais forte do que o governante da Igreja, como sucede em muitas nações. A administração pode impedir qualquer mudança somente por sua inércia. Nem sequer João Paulo II se atreveu a intervir na Cúria. Impotente em Roma, ele foi ao mundo, onde foi aclamado triunfalmente.

A maioria conciliar que o grupo renovador conseguiu conquistar não queria ruptura e, por isso, sempre deu importância à minoria conservadora, que embora pequena, representava os interesses da Cúria. Por isso, muitos textos ficaram ambíguos, uma vez que depois de um parágrafo reformista vinha um parágrafo conservador que afirmava o contrário. Anunciavam-se temas novos, mas logo se abria espaço para temas velhos, da tradição dos Papas Pios. Essa ambiguidade prejudicou muito a aplicação do Concílio.

A minoria conciliar e a Cúria não se converteram. Com efeito, opõem-se ao Vaticano II e encontram argumentos nos próprios textos conciliares conservadores. Quando João Paulo II citava os textos do Vaticano II, citava os textos mais conservadores, como se os outros não existissem. Por exemplo, na Lumen Gentium, está claro o destaque que se dá ao Povo de Deus; evidentemente, quando se trata da hierarquia, o Povo de Deus desaparece e tudo continua como sempre. Em 1985, por instigação do então cardeal Ratzinger, a expressão ´"povo de Deus" foi eliminada do vocabulário do Vaticano. Desde então, nenhum documento romano faz referência ao Povo de Deus, que era tema importante da Constituição conciliar. O cardeal Ratzinger tinha descoberto que "povo de Deus" era um conceito sociológico, embora o conceito de "povo" não se encontre nos tratados de sociologia. O povo não existe sociologicamente, porque é um conceito teológico, bíblico!

Esta situação terá muita importância na ulterior evolução do Vaticano II, na Igreja. Desde o começo, houve um partido ao qual sempre se deu importância e poder, e que lutou contra todas as novidades. Nas eleições pontifícias - que, como sempre, são manipuladas por alguns grupos -, o problema do Vaticano II foi decisivo, e os Papas foram eleitos, porque se sabia de suas restrições aos documentos conciliares em tudo o que estes têm de novo. O atual Papa pode viver mais dez anos ou mais. Depois dele, podemos imaginar que novamente será eleito um Papa pouco comprometido com o Concílio, para usar um eufemismo, porque os grupos que defendem essa posição são muito fortes na Cúria e no colégio dos cardeais; e não há sinais de que as futuras nomeações possam trazer mudanças de orientação. As últimas, na Cúria, são eloquentes.

 
2. De 1965 a 1968

 
A história da recepção do Vaticano II foi determinada por um acontecimento totalmente imprevisto. 1968 é uma data simbólica, a da maior revolução cultural na história do Ocidente, mais que a Revolução francesa ou a Revolução russa, porque diz respeito à totalidade dos valores da vida e de todas as estruturas sociais. A partir de 1968, o que ocorreu foi muito mais do que um protesto dos estudantes. Foi o começo de um novo sistema de valores e de uma nova interpretação da vida humana.

O Vaticano II respondeu às interrogações e aos desafios da sociedade ocidental em 1962. Os problemas tratados, as respostas propostas, as discussões sobre as estruturas eclesiais, as ideias sobre uma reforma litúrgica, tudo isso tinha sido preparado por teólogos e pastoralistas, sobretudo a partir dos anos 30, nos países da Europa central: França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça e algumas regiões do norte da Itália. A sociedade européia, destruída pela guerra, estava reconstruída, e a Igreja ocupava um lugar de destaque na sociedade. Era governo na Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e tinha participação nos governos da França. Na verdade havia perdido contato com a classe operária; porém estava diminuindo numericamente em função da evolução da economia para os serviços. O número de católicos praticantes também estava diminuindo, embora não de maneira que chamasse a atenção. A Igreja contava com um clero fiel, um episcopado bastante instruído; embora socialmente pouco reformista, identificava-se com os partidos democrático-cristãos. O grande problema da Igreja era a tensão entre os setores mais comprometidos com a nova sociedade e o mundo romano de Pio XII, apoiado pelas Igrejas de países menos desenvolvidos e mais tradicionais, como a Espanha, Portugal, a América Latina, a Itália - sobretudo ao sul de Florença - e pelas populações católicas do Sudeste europeu. Os problemas eram estruturais; não atingiam nem os dogmas nem a moral tradicional.

Em 1968, começava abruptamente uma revolução total, portanto, que atingia todos os dogmas e toda moral tradicional, bem como todas as estruturas institucionais, tanto da Igreja como da sociedade. Em 1968, teria sido impossível o Vaticano II, porque não haveria ninguém ou quase ninguém para entender o que estava passando. O Vaticano II respondeu aos problemas de 1962; não tinha respostas aos desafios de 1968. Em 1968, o Concílio teria sido um Concílio conservador, assustado pelas radicais transformações culturais que então começavam.

As manifestações exteriores da revolução dos estudantes em todo o mundo ocidental desenvolvido foram reprimidas com facilidade. Por isso, muitos pensaram que ela teria sido um episódio sem consequências significativas. Na verdade, era o começo de uma nova era, que ainda se encontra em pleno desenvolvimento. 1968 significa mudança de toda a política, a educação, a organização da vida, a economia e de todos os valores morais.

1968 é uma data simbólica que evoca os grandes acontecimentos que mudaram o mundo na década dos anos 60, sobretudo a partir de 1965.

a. 1968 significou uma crítica radical a todas as instituições estabelecidas e a todos os sistemas de autoridade. Era a contestação global a toda a sociedade organizada tradicional. A crítica dirigia-se ao Estado, à Escola em todos os seus níveis, ao Exército, ao sistema jurídico, aos hospitais. Era uma crítica a todas as autoridades estabelecidas que mandam por força das estruturas e fazem de todos os cidadãos prisioneiros das instituições. É evidente que a Igreja católica está incluída nessa crítica. A Igreja católica era o típico modelo de um sistema institucional radicalmente autoritário. Ela foi imediatamente atacada e denunciada com vigor. As mudanças conciliares, tão típicas, não podiam convencer a nova geração. O Vaticano II era totalmente inofensivo, se comparado à revolução cultural iniciada em 1968.

b. 1968 iniciou uma luta contra todos os sistemas de pensamento, o que foi chamado de “os grandes relatos”. Os sistemas são formas de manipulação do pensamento, são expressões de dominação intelectual. Não se aceita nenhum sistema que tenha a pretensão de ser “a verdade”. Com isso, sofrem os dogmas e o código moral da Igreja católica, bem como toda a sua pretensão de “magistério”. O Vaticano II nem sequer podia imaginar que tal situação tivesse sido possível. Lá, não houve discussão de nenhum dogma, e todo o sistema de pensamento nunca foi questionado. Agora, a nova geração contesta todo o sistema doutrinal da Igreja católica, porque esse sistema não permite o livre exercício do pensamento. Não é que a nova geração queira negar todo o conteúdo doutrinal; não quer é aceitar todo um sistema, sem discuti-lo primeiro; e não quer aceitá-lo em bloco. Quer examinar cada elemento, aceitar ou não aceitar.

c. Simultaneamente se deu a explosão da revolução feminista. O descobrimento da pílula, que permite evitar a fecundação e que, portanto, facilita a limitação da natalidade, despertou universal entusiasmo entre as mulheres que tomaram conhecimento da novidade. Era um elemento básico para a libertação das mulheres, que assim deixavam de ser totalmente dependentes de maternidades repetidas. Também era uma novidade para a Igreja. Na Bíblia, nada havia sobre essa técnica. Os episcopados dos países socialmente mais desenvolvidos e o s teólogos consultados pelo Papa opinaram que, na moral cristã, não havia nada que pudesse condenar o uso da pílula. Todavia, o Papa deixou-se impressionar pelo setor mais conservador, embora minoritário, e publicou a encíclica Humanae Vitae, que teve o efeito de uma bomba. Muitos não conseguiam acreditar que o Papa tivesse assinado essa encíclica. A revolta entre as mulheres católicas foi enorme. Elas não aceitaram a proibição papal e aprenderam a desobediência. A partir desta data, veio o êxodo das mulheres. Ora, as mulheres são as que transmitem a religião. Quando, pois, as mulheres deixaram de ensinar a religião a seus filhos, apareceram gerações que ignoram totalmente o cristianismo. Muitos bispos ficaram desnorteados; não podiam fazer nada, porque o Concílio não havia sequer tocado no exercício do primado do Papa. O Papa decide sozinho, mesmo contra todos. fora o caso: o Papa havia decidido contra os bispos, os teólogos, o clero, os leigos informados. Por infelicidade, foi obra do Papa Paulo VI, que, por tantos méritos na história do Concílio, aparecia como um homem de abertura de mente. Por que justamente ele? De outro Papa ter-se-ia entendido melhor, embora o efeito produzido teria sido igual. Para muitos, a Humanae Vitae era um desmentido do Vaticano II. Nada tinha mudado!

d. 1968 e a sociedade de consumo. Até então, o consumo era regulado pelos costumes. Havia um consumo moderado e limitado. Os ricos não ostentavam sua riqueza. O consumo dependia da regularidade da vida: comida regulares e tradicionais, festas tradicionais com gastos tradicionais, num ritmo de vida em que o trabalho ocupava o lugar central. A partir da década de 60, o trabalho deixou de ocupar o centro da vida. De ora em diante, o centro se constitui na busca do dinheiro, a fim de pagar as férias, os fins de semana, as festas e o consumo festivo. O trabalho permite o consumo. O trabalho agrícola desaparece nos países mais desenvolvidos, e o trabalho industrial diminui. As estruturas sociais estimulam o consumo, e os que não podem consumir se consideram inferiores. As pessoas gastam o que não têm e pagam em 12, 48, 70 prestações. Pode-se consumir sem pagar logo. Paga-se depois de anos. Os jovens gastam o mais que podem.

e. O capitalismo descontrolado. A supressão de todas as leis que controlam os movimentos de capitais estimula a corrida à riqueza. A nova moral qualifica as pessoas pelo dinheiro que acumulam e pela ostentação de sua riqueza. De ora em diante, os donos do capital fazem o que querem e como querem, correndo o risco de provocar crises financeiras, cujas vítimas são os pequenos. Até a queda do comunismo na URSS, o magistério lutava contra esse comunismo e dava pouca atenção ao rápido crescimento de uma nova forma de capitalismo. Na América Latina, a Igreja reagia muito timidamente à conquista econômica por grandes centros capitalistas mundiais. Na prática, a Igreja vai esquecendo-se da Gaudium et Spes e vai aceitando a evolução do capitalismo descontrolado. A doutrina social da Igreja perdeu todo o sentido profético, porque na prática, não houve aplicação alguma em casos concretos. Na prática, o magistério aceitou o novo capitalismo.

Nada disso foi provocado pelo Concílio. Não se pode atribuir ao Vaticano II tudo o que sucedeu como consequência da grande revolução cultural do Ocidente. Mas essa revolução teve, sim, imediatas repercussões na juventude da Igreja. Todos sentiram que a instituição da Igreja estava sendo profundamente questionada e desprestigiada. Esse desprestígio não veio do Vaticano II, mas, sim, da grande crise cultural. O efeito mais visível foi a crise sacerdotal: uns 80.000 sacerdotes deixaram o ministério. Quase todos os seminaristas abandonaram os seminários. Pelos adversários do Concílio, tudo isso foi consequência do mesmo. Na verdade, nele não havia nada que pudesse explicar este fenômeno, nem explicar a saída de milhões de católicos leigos. Tudo se explica porém, a partir da revolução cultural da juventude.

 
3. A reação da Igreja foi a que se podia temer

 
Os Papas e muitos bispos aceitaram o argumento dos conservadores, segundo os quais os problemas da Igreja vinham do Vaticano II. Vários teólogos que tinham sido defensores e promotores dos documentos conciliares mudaram e adotaram a tese dos conservadores, entre eles o próprio Papa atual. Começaram a dizer que o Concílio “foi mal interpretado”. Por isso, o Papa convocou um Sínodo extraordinário, em 1985, por ocasião dos 20 anos do encerramento do Concílio, para lutar contra as falsas interpretações e dar uma interpretação correta. Na prática, a nova interpretação, a “correta”, consistia em suprimir tudo o que havia de novo nos documentos do Vaticano II. Um sinal emblemático foi a condenação da expressão “Povo de Deus”. Acabou-se a época das experiências, dizia João Paulo II. Praticamente, o que se fez foi repetir o que se tinha feito depois da Revolução francesa: fechar portas e janelas, a fim de cortar a comunicação com o mundo exterior e reforçar a disciplina, para evitar as saídas. Não se conseguiu, porém, evitar as saídas. O problema é que a Igreja já não conta com um imenso campesinato pobre. Na América Latina, os pobres vão para os evangélicos.

Desde então, na linguagem oficial, faz-se referência ao Concílio, sua mensagem permanece, porém, ignorada. O Concílio permanece na memória e na fundamentação das minorias sensíveis à evolução do mundo que nele buscam argumentos para pedir mudanças e respostas aos desafios do mundo atual. A juventude – os novos sacerdotes incluídos – não sabe o que foi esse Vaticano II, que, para eles, não suscita nenhum interesse. Estão mais interessados no catolicismo anterior ao Vaticano II, com sua segurança, sua beleza litúrgica e a justificação de um autoritarismo clerical que os exime dos problemas.

A reação da Igreja manifestou-se pela a volta à disciplina anterior. O símbolo dessa reação foi o novo Código de Direito Canônico, em que se mantém toda a estrutura eclesiástica do Código de 1917, às vezes, com uma linguagem menos autoritária e mais florida. O Novo Código fechou as portas a todas as mudanças que podiam inspirar-se no Vaticano II. Tornou-se historicamente inoperante o Vaticano II.

Em relação ao mundo, a prioridade dada à luta contra o comunismo – um comunismo já em plena decadência – fez com que a Igreja aceitasse, em silêncio – os silêncios da doutrina social da Igreja, dizia o padre Calvez -, o capitalismo desenfreado que se instalou na década de 70. Na América Latina, o Vaticano apoiou as ditaduras militares e condenou todos os movimentos de transformação social, em nome da luta contra o comunismo. A partir do governo Reagan, a aliança com os Estados Unidos manteve-se fiel, até a guerra do Iraque, que, pro fim e por um momento, abriu os olhos do Papa. Dessa forma, a Igreja, em sua pastoral real, se aliava aos poderosos do mundo e se condenava a ignorar o mundo dos pobres. As nomeações episcopais foram altamente indicativas.

Na América Latina, a reação da Igreja frente à revolução cultural iniciada no mundo desenvolvido foi muito dolorosa. Destruiu algo novo que estava nascendo. Pois, na América Latina, o Vaticano II significou uma mudança real. Foi o Vaticano II que converteu o episcopado e boa parte do clero, bem como dos religiosos. Havia sacerdotes, religiosos, leigos e também bispos que tinham feito uma opção pelos pobres. Em Roma, os bispos latino-americanos se encontraram e foram evangelizados pelos bispos da opção pelos pobres. O CELAM, com a aprovação de Paulo VI, convocou a assembléia de Medellín, que mudou os rumos da Igreja, porque tirou conclusões práticas do Concílio. Fez opção pelos pobres e comprometeu-se por uma mudança social radical; legitimou as comunidades eclesiais de base e a formação dos leigos a partir da Bíblia; optou pela ação política. As CEBs trouxeram uma estrutura nova, em que os leigos tinham possibilidade de iniciativa e um poder real, embora limitado. Em várias regiões, Medellín não foi aceito ou não foi aplicado, mas houve regiões importantes em que ele mudou a Igreja, e esta mudança provinha da aplicação do Vaticano II.

Todo esse movimento foi sistematicamente atacado, em Roma, com argumentos proporcionados por setores reacionários da América Latina. Desde 1972, a campanha contra Medellín foi dirigida por Alfonso López Trujillo. Apesar dessa campanha, em Puebla, em 1979, Medellín se salvou. Porém, no pontificado de João Paulo II, a pressão aumentou. As advertências romanas, as nomeações episcopais, as expressões de repressão contra os bispos mais comprometidos com Medellín tiveram efeito. A condenação da teologia da libertação, em 1984, queria dar o golpe final. A carta do Papa à CNBB, no ano seguinte, limitou um pouco o alcance da condenação, porém, a teologia da libertação continuou algo suspeito.

 
4. O que fica do Vaticano II

 
Hoje em dia, as reformas conseguidas pelo Vaticano II parecem-nos muito tímidas e totalmente inadequadas por causa de sua insuficiência. Ter-se-á que ir muito mais longe, porque o mundo mudou mais nos últimos 50 anos do que nos 2.000 anteriores.

Do Vaticano II destacamos o seguinte, que deve permanecer como uma base para as reformas futuras:

- O retorno à Bíblia como referência permanente da vida eclesial, acima de todas as elaborações doutrinais, os dogmas e as teologias.

- A afirmação do Povo de Deus como participante ativo na vida da Igreja, tanto no testemunho da fé como na organização da comunidade, com uma definição jurídica de direitos e com direito a recurso nos casos de opressão por parte das autoridades.

- A afirmação da Igreja dos pobres.

- A afirmação da Igreja como serviço ao mundo e sem buscar poder.

- A afirmação de um ecumenismo de participação mais íntima entre as Igrejas cristãs.

- A afirmação do encontro entre todas as religiões, incluindo as opções não-religiosas.

- Uma reforma litúrgica que use símbolos e palavras compreensíveis para os homens e as mulheres de hoje.

 
5. As condições da humanidade, hoje: em radical transformação

 
a. Como entender a fé?

 
A partir da modernidade, muitos cristãos perderam a fé ou imaginaram que a haviam perdido, porque tinham uma ideia equivocada da mesma. Atualmente, esse fenômeno se multiplica, porque a formação intelectual se desenvolveu, e muitos ficaram com uma consciência religiosa infantil ou primitiva, que eles logo rejeitam ou perdem, assim que chegam à adolescência.

Os povos primitivos, de cultura oral, e as crianças crêem tanto nos objetos religiosos como nos objetos de sua experiência. Por isso, é fácil imaginar que a fé é algo como a experiência imediata. Quando se dão conta de que não podem crer nos objetos da religião dessa forma – uma vez que adquirem espírito crítico -, crêem que perdem a fé, uma vez que a confundem com sua consciência religiosa infantil.

A fé é diferente da experiência imediata, do conhecimento científico ou do conhecimento filosófico. O objeto da fé é Jesus Cristo, sua vida. É aderir a essa vida e adotá-la como norma de vida, porque ela tem um valor absoluto, porque essa vida é a verdade: é assim que devemos ser homens e mulheres. Não é uma evidência que não permite dúvidas. É uma percepção de verdade, que nunca suprime uma fresta de dúvida, porque sempre é um ato voluntário e porque não se vê essa verdade. O crente não se sente obrigado a crer. É um ato de entrega de sua vida; é a eleição de um caminho. Não há evidência de que Jesus vive e está em nós, mas se reconhece, porque se sente uma presença que é um chamado repetido, apesar de todas as dúvidas.

Hoje em dia, o Papa condena como relativismo fenômenos próprios do ser humano atual, que não consegue mais entender a maneira tradicional de conhecer os objetos da religião. Estes já não fazem parte de sua experiência de vida. A fé é um conhecimento todos especial da vida de Jesus, incomparável com as certezas que ele adquire no dia a dia da vida. Esta condição do ser humano atual demanda uma profunda revisão da teologia da fé. Já está sendo feita esta revisão da teologia, mas ela não é divulgada, o que permite que milhões de adolescentes percam a fé, sobretudo porque não se lhes explica o que é.

 
b. A religião

 
Nossos contemporâneos deixam os atos litúrgicos oficiais da Igreja porque os acham chatos. A repetição do mesmo é chata. A repetição de “domingos do ano” durante tantas semanas é algo chato. A linguagem litúrgica é pior, porque se dá em língua popular. Quando a liturgia era em latim, era melhor, porque não se entendia. Uma vez que se entende, se nota que o estilo é insuportável. Ela se utiliza de uma linguagem pomposa, formalista, de uma linguagem de corte: “humildemente pedimos...” Ninguém fala assim hoje em dia. “Associamos nossa voz à voz dos anjos...”, fórmula convencional que não corresponde a nada na vida. E há centenas de fórmulas semelhantes. Os carismáticos salvam a situação, porém sua liturgia está longe de ser uma introdução ao mistério de Jesus.

 
c. A moral

 
Nossos contemporâneos não aceitam códigos de moral, nem que se lhes imponham ou proíbam condutas porque estão no código. Eles querem entender o valor dos preceitos ou das proibições. Ou seja: estão descobrindo a consciência moral que permite descobrir o valor dos atos. Não aceitam a voz de uma consciência que nada mais é do que a voz do “superego”. Antes, a base da moral cristã era a obediência à autoridade. Devia-se fazer ou não fazer, porque a Igreja o mandava ou o proibia. Por isso, tantas vezes os leigos perguntam: pode-se fazer isso? Se o sacerdote dizia que sim, o problema moral estava solucionado. Isso já pertence ao passado.

 
d. A comunidade

 
O cristianismo é comunitário. Porém, as formas tradicionais de comunidade tendem a debilitar-se. A própria família perdeu muito de sua importância, porque seus membros se encontram menos. A paróquia atual perdeu o sentido de comunidade. Estão aparecendo muitas novas formas de pequenas comunidades, baseadas na livre escolha. Essas comunidades terão capacidade de celebrar a eucaristia, o que supõe que haja uma pessoa apta para presidir a eucaristia em cada grupo de umas 50 pessoas. Não há nenhuma dificuldade doutrinal, uma vez que nos primeiros séculos a situação era essa e não houve problemas. Isto é fundamental, porque uma comunidade que não se une em torno da eucaristia, na verdade, não é uma comunidade cristã. Os sacerdotes estarão com o bispo de cada cidade importante, em tempo integral, para evangelizar todos os setores da sociedade urbana.

Evidentemente, não sabemos quando ou como isso chegará. É pouco provável que um Concílio que reúna somente bispos possa descobrir as respostas aos desafios do tempo. As respostas não virão da hierarquia, nem do clero, mas, sim, dos leigos que vivem o Evangelho no mundo por eles entendido. Por isso, temos que estimular a formação de grupos de leigos comprometidos simultaneamente com o Evangelho e com a sociedade humana em que trabalham.

O Vaticano II ficará na história como uma tentativa de reformar a Igreja no final de uma época histórica de 15 séculos. Seu único defeito é que veio tarde demais. Três anos depois de sua conclusão, caía na maior revolução cultural do Ocidente. Seus detratores o acusaram de todos os problemas surgidos dessa revolução cultural e, com isso, o mataram. Porém, o Vaticano II permanece um sinal profético. É uma voz evangélica, numa Igreja prisioneira de um passado que não sabe superar. Não pôde reformar a Igreja, como queria. Foi, porém, um chamado para olhar para o futuro. Ainda há movimentos poderosos que pregam a volta ao passado. Temos que protestar. Quando pessoas que nada entendem da evolução do mundo contemporâneo querem refugiar-se num passado sem abertura para o futuro, temos que denunciar. Para nós o Vaticano II é Medellín. Também quiseram matar Medellín. Medellín permanece como um farol que nos mostra o caminho.

Última reflexão: o futuro da Igreja católica está nascendo na Ásia e na África. Será muito diferente. Aos jovens há que se dizer: aprendam chinês!

 
In memoriam.


*Homenagem ao Autor, falecido aos 27 de março de 2011.



Fonte: Revista Eclesiástica Brasileira, julho de 2011, p. 629 – 641, Vozes.