quinta-feira, 30 de junho de 2011

TdL em Mutirão 4

A UTOPIA DO MANIFESTO COMUNISTA E A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO






1. Por que o Manifesto Comunista, 150 anos depois?

Não somente 150 anos nos separam do Manifesto Comunista. Mais do que todos estes anos, as quedas do Muro de Berlim e do bloco socialista parecem ter transformado as idéias e os ideais dos comunistas e dos socialistas em coisas do passado, em algo "jurássico". Para muitos, os escombros do Muro enterraram não somente o Marx, mas também a Teologia da Libertação. Estes fariam parte do passado, tornando-se objetos de estudo e reflexão só dos historiadores.
Mesmo que assim fosse, a história é mais do que um simples olhar para o passado, é também uma tentativa de compreender o presente e vislumbrar as possibilidades do futuro. Neste momento de grandes transformações e crises sociais, nunca é demais voltarmos aos textos clássicos que estão na origem dos nossos tempos.
Para podermos "dialogar" com o Manifesto hoje, precisamos distinguir três níveis do texto. O primeiro se refere às análises e propostas conjunturais, típicas de um documento de um partido ou um movimento político. Próprios autores afirmaram, no prefácio da edição alemã de 1872, que com a mudança das condições históricas "não se deve atribuir nenhuma importância particular às medidas revolucionárias propostas no final do capítulo II".
O segundo se refere às análises ainda válidas de aspectos mais esturuturais do capitalismo . Por exemplo, o fato de que onde a burguesia chegou ao poder destruiu todas as relações feudais e "afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta" todas as relações humanas e sociais, até mesmo as relações familiares e "os sagrados frêmitos da exaltação religiosa". Nos últimos anos, economistas como Gary Becker e James Buchanan, ganhadores de Nobel, construíram suas carreiras acadêmicas propondo a utilização da racionalidade econômica neoclássica em outras esferas da vida, como política, burocracia, racismo, família e fertilidade. E o último livro de Fukuyama propõe o uso da religião para o aumento da confiança na sociedade e nas empresas com o objetivo de aumentar o crescimento econômico.
O terceiro se refere ao sonho presente em todas as sociedades de todos os tempos de uma humanidade emancipada de sofrimentos causados pela natureza e pelas relações sociais baseadas na dominação e exploração. No Manifesto este sonho ou utopia aparece revestida de cientificidade. Engels, nos prefácios à edição alemã de 1883 e à edição inglesa de 1888, diz que a idéia fundamental do Manifesto é que toda a história tem sido uma história de lutas de classes e que "essa luta, porém, atingiu atualmente um estágio em que a classe explorada e oprimida (o proletariado) não pode mais se libertar da classe exploradora e opressora (a burguesia) sem libertar ao mesmo tempo e para sempre toda a sociedade da exploração, da opressão e das lutas de classe".
Este projeto do Reino da Liberdade, "uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos" é um sonho acalentado por muitas religiões e povos. Profeta Isaías, por exemplo, ao anunciar "novos céus e nova terra" que Deus irá criar, fala de uma sociedade onde "não se tornar a ouvir choro nem lamentação" e "os homens construirão casas e as habitarão, plantarão videiras e comerão os seus frutos. Já não construirão para que outro habite a sua casa, não plantarão para que outro coma o fruto." (Is 65,17-22) E o Leonardo Boff, nos primeiros anos da Teologia da Libertação, apresentava a a libertação "como superação de toda escravidão" e "como vocação a ser homens novos, criadores de um mundo novo".
É sobre este ponto que queremos centrar a nossa atenção.

2. A não-factibilidade da utopia.

Com o condicionamento da libertação do proletariado à libertação para sempre de toda sociedade da exploração e opressão, torna-se fundamental a questão da possibilidade real ou não desta libertação plena. Marx e Engels apostaram, na verdade num grande ato de fé, na evolução "plenificadora" da história, isto é, na realização plena do dever-ser humano no interior da história. Uma realização que significaria a criação de um novo ser humano e da verdadeira história, que já não seriam mais o ser humano e a história como nós conhecemos.
Esse mito de um tempo áureo, não no passado como era apresentado nas antigas religiões, mas no futuro, baseado no mito típico da modernidade o mito do progresso, foi sustentado "cientificamente" com o diagnóstico de que todas as lutas de classe e as dominações e explorações eram fundadas basicamente na propriedade privada. Desenvolvimento das forças produtivas, em grande parte já realizada pela burguesia, e a superação da propriedade privada dos meios de produção: aqui estava o segredo da nova história e nova humandade. Por isso, Marx e Engels aescreveram: "os comunistas podem resumir sua teoria nessa única expressão: abolição da propriedade privada".
O problema é que a alienação não se funda somente na propriedade privada, mas fundamentalmente na divisão social do trabalho. É a necessidade de se dividir socialmente o conjunto de trabalhos necessário para a reprodução da vida material e simbólica da sociedade que leva à necessidade de intercâmbio dos produtos entre os agentes econômicos. A especialização, que gera o aumento da produtividade, é também causadora da maior complexificação do sistema econômico, o que leva ao aumento das relações mercantis, das trocas mediadas pelo dinheiro no mercado.
A experiência do modelo socialista soviético nos mostrou que o fim da propriedade provada dos meios de produção não extinguiu as relações mercantis, nem a alienação do trabalho. Isso só seria possível se fosse atingida a planificação completa e perfeita de toda a divisão social da trabalho. O que pressupõe o conhecimento perfeito de todos os fatores diretos dos sistema produtivo, de todas as necessidades e desejos dos consumidores e das variações da natureza, como clima e o funcionamento do sistema ecológico. O que sabemos ser impossível.
Mesmo que fosse possível conhecer plenamente os fatores materiais e naturais do sistema produtivo, não é possível fazer planejamento perfeito da economia por que os desejos dos consumidores (a esquerda costuma esquecer do desejo e só trabalhar com o conceito de necessidades humanas básicas) não são estáveis e nem finitos. Nós somos animais com desejos ilimitados e mutantes, enquanto que os recursos econômicos são finitos e escassos. Além disso, seria necessário poder calcular perfeitamente a contribuição real de cada na produção social para que não houvesse exploração ou injustiça na distribuição de riqueza ou renda.
Em resumo, a utopia da libertação plena, ou a ucronia (não-tempo) da construção de um futuro absolutamente novo, não são factíveis historicamente. São objetos de desejos de toda a humanidade, desde os tempos mais remotos e estão expressos em mais diversos mitos religiosos e "seculares", mas impossíveis. São amostras de que nós somos capazes de desejarmos para além das possibilidades humanas. Pois não é verdade que "querer é poder".

3. A imprescindibilidade da utopia.

De acordo com a proposição do Manifesto, o reconhecimento da impossibilidade de uma sociedade plenamente libertada nos levaria à conclusão de que a própria libertação do proletariado também é impossível. E assim, nos restaria o único caminho da aceitação da ausência de outro caminho e seguir dentro da lógica do mercado global, tentando no máximo "humanizá-la" um pouco.
Para superarmos esta lógica do "tudo ou nada", precisamos retomar o conceito de utopia. Os defensores de todos os sistemas totalitários, como o atual do "mercado total", propagam que as utopias são sonhos impossíveis de grupos que não conseguem aceitar a realidade como ela é; e anunciam que hoje vivemos a era do fim das utopias. Enquanto que os que lutam por uma sociedade alternativa procuram criar novas utopias em substituição da velha, na esperança de que o impossível foi a velha utopia, mas a nova se tornará realidade um dia.
Acredito que devemos assumir o fato de que as utopias, se realmente utópicas, não são factíveis através das ações humanas, nem através de pseudo-sujeitos supra-humanos, isto é instituições messianizadas ou sacralizadas, como é o caso hoje do Mercado Total do neoliberalismo ou do Partido ou Estado Revolucionário. Mas, ao mesmo tempo, devemos ter claro que a utopia não é algo sem sentido, muito menos uma produção exclusiva da esquerda.
Utopia é uma necessidade epistemológica para todos que querem intervir na sociedade. Até mesmo os neoliberais defensores da idéia do fim das utopias precisaram criar o conceito transcendental ou utópico de "mercado de concorrência perfeita" ou o "mercado totalmente livre" para poderem elaborar hipóteses que norteiam suas intervenções no campo econômico e político. Sem utopia a compreensão da realidade fica restrita ao factual, ao existente. É a utopia que nos permite ver o que ainda não é e nos possibilita traçar estratégias de intervenção social. Isso ocorre de modo semelhante também em outras áreas. Um engenheiro que busca construir um motor mais econômico precisa ter em mente um motor que não gasta nenhuma energia e procurar uma aproximação deste modelo ideal.
No caso da engenharia, ele sabe que o seu objetivo último é impossível, que está buscando uma aproximação que no limite será impossível. Mas no caso dos movimentos sociais, sejam de afirmação do sistema vigente, sejam de oposição, esquecem facilmente da não factibilidade histórica da utopia. Mas o segredo das grandes utopias está exatamente neste esquecimento. Pois é este esquecimento que acende a esperança da realização plena dos nossos desejos. Freud dise que a força da religião reside no desejo, aqui podemos parafraseá-lo e dizer: a força da utopia está no desejo. O que nos leva a dizer que, em certo sentido, as grandes utopias sociais modernas não são tão distantes assim das religiões.
A diferença fundamental entre movimentos sociais movidos pelas utopias seculares, como o do consumo infinito do mercado capitalista ou a associação livre do Manifesto, e as religiões é que nestas há, pelo menos teoricamente, uma consciência mais clara do limite da condição humana e das ações humanas. Porque, no fundo, o fundamento da realização da esperança religiosa não reside na ação humana e nem nas instituições messianizadas, mas sim em Deus ou em outros seres sobre-naturais; e o tempo da espera da realização não se limita ao interior da história, mas atinge -em muitas das religiões- ao eterno, ao escatológico, ao que está além da história humana.
Deus aparece aqui não como um anulador da ação humana, mas sim aquele que com a sua presença no discurso mostra o limite da condição humana, ao mesmo tempo em que suscita a esperança de se alcançar algo que nos transcende, que vai além dos nossos limites. E isto é fundamental para evitarmos a sacralização das instituições que acabam por exigir sacrifícios de vidas humanas. Na história humana já conhecemos demais histórias de vitimações em nome das Igrejas/religiões, do Mercado ou Estados sacralizados.
Mas é óbvio que a consciência da utopia como um conceito limite não é uma exclusividade da consciência religiosa. Próprio Marx chegou a esta conclusão quando disse que "assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis", por isso mesmo numa possível sociedade de produtores associados "este sempre continua a ser um reino da necessidade", sobre o qual se deve construir o reino da liberdade, que não será plena.

Esta concepção de utopia como uma necessidade epistemológica que nos fornece um ponto a partir do qual podemos criticar a negatividade presente na realidade e assim nos fornece horizontes de intervenção social; como um objetivo do qual podemos nos aproximar mas nunca realizar plenamente; e como um fator de aglutinação e de mobilização social serve tanto para analisar a utopia neoliberal conservadora, quanto utopias sociais provenientes das esquerdas "seculares" ou religiosas .


4. Teologia da Libertacão e utopia.

Nesta compreensão de utopia, o reconhecimento da impossibilidade da libertação plena da humanidade não nos impede de lutarmos por um processo de emancipação sempre incompleta dos trabalhadores e dos excluídos. Além disso, nos impele a lutarmos na arena da construção e socialização de utopias norteadoras da dinâmica social.Pois, reconhecemos que não estamos vivendo uma era de fim das utopias, mas sim uma época da vitória de uma utopia que se apresenta como a única possível. Em certo sentido, a utopia neoliberal de hoje é uma utopia (não factível) de uma sociedade sem nenhuma utopia que não seja a sua.
Nesta parte final do artigo, eu quero apresentar algumas reflexões que procuram sintetizar algumas intuições básicas do cristianismo e esta forma de conceber a utopia. No fundo, retomo um desafio presente na Teologia da Libertação desde o seu início: a articulação entre política e escatologia. Acredito que elas podem ser úteis no diálogo mais do que necessário hoje entre aqueles que buscam uma alternativa à utopia perversa do Mercado Total do neoliberalismo.
Primeiro, não houve e nem haverá um "tempo de ouro" no interior da história humana. Nem a harmonia fundamental entre os seres humanos e natureza projetada no passado, nem a abundância e harmonia ilimitadas capaz de satisfazer todos os desejos humanos no futuro, através do mito do progresso tecnológico ou via revoluções. O tempo de ouro ou utopia são "imaginações" humanas construídas para nos permitir atuar no mundo e/ou para nos dar a segurança da existência de uma realidade definitivo. É preciso assumirmos a provisoriedade e a ambigüidade da historicidade humana.
Segundo, na medida em que não haverá a vitória definitiva, é preciso assumir explicitamente que a opção pelos trabalhadores e excluídos não se deve pelo fato de que eles são a classe ou o grupo messiânico realizador da libertação. Mas sim porque são os que sofrem a negatividade do mundo capitalista. Neste sentido, é preciso criticar o Manifesto que critica o evangelho social por optar pelos operários porque são os que sofrem mais. Mesmo após uma possível vitória de um novo projeto social, continuará havendo sofredores e vítimas. Esperamos que sejam em menor número, mas o realismo nos deve preparar para lutarmos novamente em defesa destas pessoas e grupos sociais.
Terceiro, o reconhecimento da não factibilidade histórica da utopia nos faz defrontar com o problema existencial de lutarmos por um sonho que de antemão sabemos impossível. Quem luta ou lutou por um sonho belo, porque humanizante, sabe que a própria luta é uma vitória pessoal, mesmo que não se consiga a vitória política desejada. Contudo, isso não dissipa a frustração do desejo impossível. E aqui entra uma característica distintivada do militante cristão: esperar em Deus, na escatologia, a realização plena dos seus sonhos pelos quais viveu. A fé na ressurreição de Jesus é a "garantia",ao modo da fé, de que as injustiças dos impérios não têm a última palavra e de que na Jerusalém Celeste todos haveremos de participar do banquete sem fim.
Em resumo, é a fé em Deus que se fêz humano e assumiu a nossa condição para, no interior da história, lutar pela vida e dignidade dos mais pobres como expressão do amor gratuito de Deus por todos e todas e ressuscitou após ser morto pelo Império Romano.
No mundo de hoje, que se entrega à loucura de uma racionalidade que visa só a acumulação de riqueza contra a vida humana e o equilíbrio de natureza, um humanismo assim parece ser loucura e perigo. Por isso, tantos têm insistido na morte de Deus (humanista), como também de Marx e Teologia da Libertação. Como diz Franz Hinkelammert, "o Deus das vítimas não morreu. Tampouco morreu a análise social crítico desde o ponto de vista do fraco, do pobre e das vítimas, que com razão se vincula tantas vezes com o nome de Marx. E por isso, tampouco morreu a Teologia da Libertação. Ademais, é mais necessária do que nunca. E por isso as alternativas retornarão".

Jung Mu Sung

Fonte: Agenda Latino Americana - acesso em 30 junho 2011, disponível em http://servicioskoinonia.org/relat/188.htm

Mural de la Catedral de la Prelatura de São Félix do Araguaia (636 Kb, 300 ppp) por Maximino Cerezo Barredo.




terça-feira, 28 de junho de 2011

TdL em Mutirão 3

40 ANOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: ONTEM E HOJE



Contexto do nascimento da TdL

Ontem, na década de 70, a teologia da libertação (TdL) nascia. Cresceu e com enorme rapidez atingiu ampla repercussão em duas décadas. Permanece viva, sem a visibilidade midiática e propalada, penetrando meandros da Igreja. Ontem, via-se o sal da TdL na consistência clara e sólida. Hoje, percebemos a água teológica da America Latina salgada. Eis a ideia central da pergunta sobre o seu ontem e o hoje.

O ser humano não surge de repente. Anuncia-se durante nove meses. Os movimentos culturais geram-se em períodos mais longos e turbulentos. A Europa no pós-Vaticano II vivia momento teológico privilegiado. Rompera o gelo da neoescolástica e fluíam torrentes inovadoras na direção de inundar de vida setores sedentos de água pura. No centro da teologia europeia estavam as questões da modernidade. Elas se originavam de um sujeito inquieto com as perguntas da ciência a quebrar o imaginário tradicional, com a irrupção da subjetividade carregada das filosofias existencialistas, com a história a relativizar a rigidez das formulações dogmáticas e com o desejo de fazer-se presente ao mundo contemporâneo secularizado.

O mundo desenvolvido, embalado pelo milagre econômico, reinterpretava a Tradição e as tradições para dentro da euforia de fé pessoal e existencialmente vivida. O mundo da pobreza, dos países periféricos, do Sul permanecia lá distante com problemas diferentes. As camadas ilustradas alimentavam-se do mesmo pensar, mas as massas sofridas e oprimidas permaneciam alheias. Aí eclode a teologia da libertação.

Para refrescar a memória, lá estavam movimentos e fatores a provocar a irrupção teológica. A Conferência de Medellín representou, sem dúvida, o divisor de águas em relação à recepção do Concílio Vaticano II na América Latina. Dedicou-se a interpretar os sinais dos tempos no nosso Continente. Para responder a eles, fizeram-se as opções fundamentais pelos pobres e por uma Igreja simples e pobre, pela libertação, pelas Comunidades eclesiais de Base, pela educação conscientizadora no sentido politicocrítico, pela Igreja local, pela vida religiosa inserida, pela evangelização junto aos pobres. Praticamente se traçava o itinerário que a TdL percorreria nas décadas seguintes. Rompia-se com o esquema sociopolítico desenvolvimentista, implantado desde a década de 50 nos países do Continente, para libertar-se dos países centrais em busca de modelo próprio. O termo libertação traduziu tal opção. E ele se amplia semanticamente para o campo da cultura e da teologia.

O ardor comprometido da juventude da JOC, mas sobretudo da JEC e JUC, não se contentou com evangelização do próprio meio em termos espirituais e marchou para crescente engajamento político de alcance nacional a ponto de ocupar a direção dos movimentos estudantis do país em perspectiva crítico-social até as raias do ímpeto revolucionário. No mundo rural, a educação libertadora, gestada pela pedagogia de Paulo Freire, trouxe frescor religioso, reinterpretando a religiosidade popular em linha de ruptura com o conformismo, acomodação e submissão em relação aos senhores do campo.

Explodiam movimentos revolucionários em luta contra os regimes militares, que se impuseram em vários países, num horizonte socialista, especialmente depois da consolidação do regime cubano, da presença da figura carismática de Che Guevara, Camilo Torres, e outros. Tempo de tensão política que repercutia no interior da Igreja e que fermentou o pensar rebelde. Resumindo: somaram-se três condições fundamentais para o nascer da TdL, a saber, clima sociopolítico libertador em face de terrível e diuturna opressão, a presença da parte significativa da Igreja nesse movimento e um grupo de intelectuais teólogos que pensaram tal embate.

Com o clima de abertura do Vaticano II, com a existência na Igreja católica e protestante de grupos comprometidos com a libertação dos pobres e com o trabalho intelectual de excelente grupo de teólogos, a TdL cresceu rapidamente e influenciou praticamente toda a teologia, inclusive europeia. Repercutiu ainda mais fortemente nos continentes africano e asiático. Surge então a Associação dos Teólogos da Libertação do III Mundo, que existe até hoje.

Em termos de produção no campo da teologia, consistente plêiade de escritores enriqueceu-a grandemente. Basta citar alguns nomes: Gustavo Gutiérrez, Leonardo e Clodovis Boff, Jon Sobrino, Hugo Assmann, Juan L. Segundo, José Comblin, Eduardo Hoornaert, Jung Mo Sung, Pedro Trigo, Ronaldo Muñoz, Francisco Taborda, Inácio Neutzling, Juan Carlos Scannone, Rubem Alves, Julio Santa Ana, Frei Betto, E. Dussel, J. M. Bonino e outros.

A força interior da TdL careceu de um instrumento para formular-se de maneira sistemática e ampla. Sob a coordenação principal de Leonardo Boff, Sérgio Torres, Ronaldo Muñoz, E. Hoornaert e Jon Sobrino, em março de 1982, teólogos dos diversos países da América Latina se reuniram, pela primeira vez, para dar andamento ao ousado projeto de publicação de uma série de tomos de Teologia na perspectiva da libertação. “Teologia e libertação”: assim se chamou tal projeto. Ele começou a ser publicado em 1985 e durou vários anos. Passou por inúmeras vicissitudes, desde intervenções eclesiásticas, impondo censura prévia aos manuscritos além da aprovação do Ordinário do lugar, até pressões sobre as editoras. A coleção não chegou a completar os 50 volumes planejados, mas atingiu a quota de 30 livros publicados. Praticamente está encerrada.

Já bem no final da mesma década de 80, outro projeto de envergadura entra em andamento. J. Sobrino e I. Ellacuría planejam um Dicionário Teológico da Libertação. A obra vem à luz no início da década de 90 sob o título de Mysterium Liberationi.

Já em Puebla (1979), havia nítidos sinais de reação contra a TdL por parte da hierarquia eclesiástica católica de tal modo que o documento final da Conferência silenciou totalmente a existência dessa teologia no Continente quase como uma vitória contra poderoso grupo que desejava sua condenação. No entanto, o método de ver, julgar e agir impôs-se na redação do documento, a parte da análise da realidade e do agir revelaram a presença da TdL à revelia de bispos conservadores de muita influência. A parte teológica, porém, aproxima-se das posições conservadores e reflete pouco a TdL.

Os anos seguintes trouxeram muito sofrimento para os adeptos da TdL. A Congregação para a Doutrina da Fé emanou um documento condenando certos aspectos da TdL. É verdade que os teólogos da libertação não se identificaram com os traços que o documento apresentava, sentindo-se então isentos de tal condenação. No entanto, setores conservadores da Igreja tomaram medidas restritivas a vários corifeus importantes, com condenações ao silêncio obsequioso ou à análise rigorosa de seus escritos.

Outro ponto de inflexão adveio no final da década de 80 com a queda do socialismo real. A TdL tinha esposado vários elementos da utopia socialista. Tal revés trouxe-lhes certa deslegitimação, especialmente no campo da publicidade.

As décadas seguintes caracterizaram-se por produção teológica bem diferenciada. Forte onda espiritualista e carismática alimenta bibliografia teológica correspondente. Os temas centrais das décadas anteriores continuam sendo recordados, já que a atual situação não trouxe nenhuma solução para os problemas dos pobres, antes lhe tem reforçado a miséria. Novos temas impõem-se por parte da teologia feminista, pela nova sensibilidade ecológica, pelas reivindicações étnicas, por uma nova antropologia em gestação, pelo novo contexto religioso, pelo domínio solitário do capitalismo neoliberal, pela presença do pluralismo religioso, pela onda cultural pós-moderna.

Pontos de consensos e consolidados

O método teológico da TdL tem consistência e continua. Em Santo Domingo, houve uma tentativa do episcopado latinoamericano, sob influência conservadora de setores eclesiais, de abandoná-lo. Mas já em Aparecida, voltou-se a ele, embora com menos clareza e contundência.

G. Gutiérrez teve a intuição inicial, ao distinguir três tipos de compreensão da teologia como sabedoria, saber racional e teórico e reflexão crítica da prática. A TdL se envereda por esse terceiro tipo. Cl. Boff avança grande passo ao elaborar as bases realmente teóricas da TdL com sua tese doutoral em Lovaina. Em esforço didático, houve vários livros que divulgaram o método. No centro da TdL está a práxis cristã no sentido de ação humana, alimentada por elementos da fé e da razão, para transformar a realidade social em vista da libertação dos pobres. Em termos concisos, a TdL se define por cinco preposições em relação a práxis cristã num contexto de opressão e libertação. Ela haure as perguntas a serem respondidas à luz da fé da práxis histórica libertadora. Suas respostas são para a práxis daqueles que estão envolvidos em tal processo a fim de que aí possam viver a fé cristã. Ela é feita por teólogos que, de certo maneira, estão na práxis. Ela se deixa criticar pela práxis na sua relevância e coerência. E, finalmente, ela se constroi motivada pela práxis.

Nessa sua relação com a práxis, a TdL se entende como teoria cristã da construção do Reino de Deus e não somente a teoria para conhecer a Deus. Tal compreensão possibilita a teologia ser formulada essencialmente como intellectus amoris. J. Sobrino desenvolve tal perspectiva, ao levar em consideração a situação conflituosa e violenta de El Salvador. Trata-se de fazer teologia como reação da misericórdia em face dos povos crucificados, concebendo assim a teologia formalmente como intellectus amori", tendo a opção pelos pobres como pré-compreensão da teologia e o mundo dos pobres como lugar primordial da teologia. A misericórdia reage adequada e necessariamente perante a realidade de pobreza e violência em que vivem os pobres, por isso que a teologia deve ser fundamentalmente um "intellectus amoris". Implica "uma determinada pré-compreensão subjetiva (a opção pelos pobres) e um determinado lugar objetivo (o mundo dos pobres)".

A TdL se faz na periferia do mundo, do Cristianismo e da Igreja, donde lhe vem a originalidade do método. Interpela a consciência mundial e eclesial a partir das maiorias pobres. A hierarquia católica acabou assumindo-lhe as intuições fundamentais. O referencial indiscutível dos oprimidos e marginalizados questionou também as outras teologias a respeito da própria relevância social e do alcance ético e espiritual. Recordou a toda a Igreja os valores do Evangelho dos pobres e da libertação.

O eixo principal que faz da TdL uma teologia universal e, de certo modo, definitiva, consiste em “fazer dos pobres e das vítimas um lugar teológico no qual se auscultam os sinais (dos tempos) e a partir do qual as fontes da teologia dão mais de si, e sobretudo facilitam descobrir a correlação transcendental entre Deus e pobres”.
Alguns Temas principais


Jesus Cristo libertador

Toda teologia desenvolve predominantemente determinados temas. A TdL focou desde o início a figura histórica de Jesus como libertador. A cristologia ocupou-lhe principalmente a atenção. Ela pretendeu superar a imagem alienante de um Cristo que reconcilia os ricos com os pobres, sem pedir conversão dos primeiros. Questiona a miséria e a opressão como escândalo e contradição com o ser cristão. Interpreta a pessoa, vida, práxis e pregação de Jesus a partir de sua identificação com os pobres (Mt 25, 31-46). A realidade do “Reino de Deus, o seguimento de Jesus ocupam lugar central nessa cristologia. A TdL abre-se a horizontes maiores do Cristo cósmico, articulando a dimensão libertadora com a sensibilidade ecológica.

Eclesiogênese e CEBs

A TdL deslocou o acento do polo tradicional hierarcológico e sacramental da comunhão para o popular comunitário. A perspectiva e a presença do pobre, pessoa e coletivo, erigem-se em critério crítico das estruturas internas da Igreja, forjadas nas concepções anteriores que o desconheciam. Defende-se uma eclesiogênese em que a Igreja nasce do povo pelo Espírito de Deus. As comunidades eclesiais de base (CEBs) encarnam a Igreja dos pobres. A TdL estabelece dupla relação eclesial. Fundamenta-a teologicamente e se alimenta de suas experiências. A eclesialidade das CEBs funda-se nas características básicas de comunhão entre si e com os pastores, de testemunhar até o martírio, de serviço, de libertação, de protagonismo da Palavra de Deus na Escritura, de pluralidade, de vigor missionário, de ecumenismo na base pela presença de católicos e evangélicos numa mesma luta e compromisso.

Exegese militante

No campo da exegese a TdL desenvolveu método próprio. Distancia-se do fundamentalismo bíblico, ao assumir as descobertas científicas da exegese moderna. Articula-as com o contexto da comunidade de fé que lê o texto bíblico e com o pré-texto sociopolítico da mesma em busca de um sentido que leve os participantes a um compromisso social. A interpretação da Escritura e a experiência da comunidade eclesial garantem a verdade e autenticidade da fé. O olhar analítico sobre a realidade permite a encarnação do sentido da Escritura e a consequente prática daí decorrente. A leitura popular – feita pelas e nas CEBs – e militante – articula-se com o compromisso social. Fé e vida, Palavra e práxis caminham juntas. As comunidades elaboram pequenos relatos de suas vidas em confronto com a Palavra de Deus, antecipando a pós-modernidade na sua crítica às grandes narrativas. Elas reagem ao reducionismo espiritualista do cenário carismático, procurando interpretar o projeto salvador de Deus, a Palavra revelada para dentro de situação histórica concreta de opressão e de libertação. Espelham-se na experiência libertária do Povo de Deus e da mensagem de Jesus. O vigor da Palavra revelada defende-as de leitura reducionista materialista ou meramente sociopolítica.

Igreja e Reino de Deus

A categoria de Reino de Deus acompanha a eclesiologia da TdL desde seus inícios, inspirada no Concílio Vaticano II. Entendida a partir dos pobres cumpre papel crítico em relação à Igreja. A Igreja não se identifica com o Reino de Deus, antes este se lhe torna instância crítica. Ela cumpre a função de ser-lhe sinal. Os sinais, que Jesus aponta da presença do Reino, fundamentam as propostas da TdL em relação aos pobres, famintos e sofredores (Lc 6, 20-21). Realidade central no tempo de Jesus exprimia os sonhos, as utopias, a esperança do povo de Israel. Ao assumir tal categoria, a TdL o interpretou especialmente como boa-nova para os pobres com a vantagem de unir num mesmo universo semântico a história (Reino) e a transcendência (de Deus), permitindo síntese entre ambas. Superam-se os dualismos e oferece-se verificação na história do dinamismo transcendente que impele a Igreja na luta pela libertação dos pobres e oprimidos. Aparece aí a profunda unidade entre Deus e a história humana, de que a Igreja se faz sinal e sacramento. A TdL, enquanto teologia fala de Deus; enquanto libertação, do Reino. Este implica a exigência fundamental da justiça. Revela o poder de Deus a atuar salvificamente na história especialmente em relação aos pobres, os prediletos de Deus. Jesus, mediador absoluto e definitivo do Reino, lhe anuncia a presença, pede conversão de todos, qualifica-o como anúncio aos pobres, seus principais destinatários. A Igreja espelha-se nele e afasta-se dele toda vez que se esquece dos pobres.
Novos temas

Novos ministérios

A prática da Igreja está a pedir profunda revisão dos ministérios, tarefa já desejada por Paulo VI. A TdL estudou a realidade concreta, empírica dos ministérios não-ordenados na Igreja latino-americana, quer através de sua descrição e análise, quer à base dos documentos emanados de instâncias eclesiásticas de nosso Continente, quer por meio de um aprofundamento teológico. Aprofundam-se as iniciativas da CNBB, especialmente a respeito da presença e participação do leigo no mundo e na Igreja.

A teologia do Espírito Santo

A TdL, desde os primórdios, trabalhou a teologia do Espírito Santo. Visava a compreendê-la no sentido de superar leitura demasiado fundamentalista e literalista do Jesus histórico. Evitou também o extremo oposto de uma espiritualização divinizante de Jesus a ponto de esquecer-lhe a mordência humana e sua força questionadora a pedir a conversão de vida. Além disso, retomou a questão da relação instituição e carisma referente à dimensão jurídica da Igreja. A presença do carisma pela ação do Espírito Santo corrige o risco do juridicismo eclesiástico.

L. Boff relaciona a eclesiologia com a pneumatologia, considerando a Igreja como sacramento do Espírito Santo. Interpreta o carisma como seu princípio de organização. Tal reflexão se faz hoje ainda mais importante em face de certa exacerbação institucional. Na questão da teologia do Espírito Santo, a TdL defronta-se com situação paradoxal. De um lado, a percepção da necessidade de avançar a reflexão nesse campo, de outro, a constatação de que está em curso um deslocamento da pneumatologia para o terreno dos movimentos de espiritualidade e apostolado em perspectiva carismático-afetiva e não transformadora das estruturas eclesiásticas e sociais.

Procura, por isso, superar o aprisionamento da presença do Espírito Santo ao reduto da intimidade individual ou de grupos carismáticos e estudá-la na sua atuação na Igreja e na história humana. Na esteira de Puebla refere-se à ação do Espírito Santo em relação à renovação dos homens e consequentemente da sociedade, das leis e das estruturas e ao despertar do anseio de salvação libertadora no coração de nossos povos.

A presença do Espírito mostra-se mais fortemente na consciência e ação dos pobres, sobretudo na experiência da descoberta da Palavra de Deus pelo povo. Já não mais como simples destinatário e objeto das interpretações do clero e das elites, mas como sujeito próprio de interpretação sobretudo nos círculos bíblicos, alimentados por enorme literatura bíblica popular e na criação de comunidades de base e de vida cristã. Finalmente, o Espírito alimenta a luta pela vida . J. Comblin faz leitura da história à luz da ação do Espírito até os atuais desafios, apontando como critério de discernimento a opção pelos pobres.

A TdL em face da pós-modernidade

A pós-modernidade traz desafios à TdL. Antes de tudo, a vitória do neoliberalismo no mundo econômico e a afirmação da cultura extremamente subjetivista, hedonista, fragmentada pós-moderna pedem que se considerem os conflitos da realidade para além do simples antagonismo das classes. Surgem movimentos sociais de amplitude mundial de caráter transclassista, transcultural, transétnico, transexual, transreligioso, de gênero que configuram novo quadro sócio-político, econômico, cultural e religioso. Deslocam-se as preocupações para o eclodir de problemas culturais e religiosos, em íntima relação com as estruturas da sociedade.

O Deus da vida ocupa espaço importante na TdL. A vida vê-se ainda mais ameaçada pelo atual sistema neoliberal e pela sociedade do conhecimento que exclui os pobres do acesso ao conhecimento e portanto, da própria subsistência. Mais grave tornou-se-lhes a situação de modo que a TdL se faz ainda mais necessária. Joga-se o futuro dos pobres, pessoas, nações ou continente, no campo do acesso ao conhecimento. Tema novo a ser aprofundado no meio do colossal desenvolvimento da informática.

Trava-se a batalha entre a cultura de morte e a cultura da vida. Puebla já agitara tal problemática, cuja gravidade aparece claramente nos dias de hoje. A TdL preocupa-se com a temática da cultura na sua diversidade: dos negros e dos índios. Inseriu-se também na corrente teológica, especialmente vinda da Índia e África, desenvolvendo a temática da inculturação e do diálogo inter-religioso. Já não se aceita a identificação simplista entre fé cristã e cultura ocidental. O futuro aposta na expressão da fé cristã em outras culturas.

Virada cosmogênica

O novo paradigma ecológico influenciou a TdL. A pergunta fundamental nesse paradigma não se prende à fé cristã, mas se estende ao futuro da Terra e de toda a humanidade. A fé cristã em todas as suas expressões juntamente com as outras religiões, se fazem co-responsáveis para manter viva a presença do Mistério sagrado no coração do universo, da história e do ser humano.

Surge-lhe o desafio da “ecologia profunda” e da espiritualidade cósmica. A Terra aparece como o novo pobre e o maior de todos, pelo tamanho e pelas terríveis consequências de sua morte para toda a humanidade. Doente, ela grita. Grito a ser articulado com o grito de todos os outros pobres da terra.

Discute-se sobre o novo paradigma ecológico que atinge as próprias concepções cosmológicas, antropológicas em curso no Ocidente, não sem influência do Oriente. A TdL tem procurado articulá-lo com os reclamos de libertação dos pobres e excluídos para que não se imponha mentalidade ecológica e religiosa alheia ao mundo dos marginalizados e deserdados da história, prolongando-lhes, então, a situação de opressão. L. Boff defende a tese da imbricação profunda da libertação e ecologia. Propõe a articulação dos discursos da libertação e ecológico como ponte entre Sul e Norte.

O surgimento de tal paradigma se deve a conhecimentos científicos da nova física quântica, a teoria da relatividade, do princípio de indeterminação de Heisenberg de um lado e, de outro, do imperativo prático da devastação da natureza pelo processo desenvolvimentista em curso no Ocidente. Aprendemos da ciência e da urgência dos problemas ecológicos, pensar o universo como uma complexa rede de relações em todas as direções e de todas as formas e como “tudo está relacionado com tudo em todos os pontos e em todos os momentos. Vigora uma radical interdependência dos sistemas vivos e aparentemente não vivos. Funda-se assim a comunidade cósmica e a comunidade planetária”.

Tal cosmologia gera nova antropologia. O ser humano já não se entende como o Prometeu dominador do criado, mas como um membro dessa gigantesca comunidade do universo. O ser humano liga-se, por origem, a todo o universo pelo processo de complexificação e centração, como Teilhard de Chardin formulou. Essa comunhão cósmica faz do ser humano alguém mais solidário, responsável e humilde. Surge nova consciência ética em relação a todo o cosmos.

Da ética se passa à mística e espiritualidade cósmica, passível de interpretação monista, como o faz a Nova Era ou libertadora. A perspectiva monista reforça-se com a mística psicológica à base da psicologia transpessoal. Nela se acentua a identidade entre o “eu e o divino”. Espiritualidade sem Transcendência, centrada no eu e em busca de encontro com o divino aí presente. Responde à busca de consolo por parte das pessoas afligidas por tantos lados.

A mística dialógica e libertadora interpela a mística cósmica de corte panteísta e monista. O encontro com nós mesmos - mística psicológica - e a harmonia com o universo - mística cósmica - defronta-se com a “desarmonia escandalosa” do pobre e excluído socialmente. Ele cumpre mais uma vez a função de discernimento diante dessas místicas, desocultando-lhes as consequências antropológicas e sociais.

Certa mística, que suprime a liberdade pessoal e a responsabilidade histórica, deixando as estruturas sociais e injustas intocadas, termina numa paz e harmonia alheia à presença do outro e no fundo de um Deus pessoal. Tal espiritualidade assenta bem com o neoliberalismo atual. A TdL a questiona ao contrapor-lhe a presença do Outro – Deus e pobre.

A mística cristã da libertação reconhece a importância da descoberta da harmonia pessoal e com o universo. Comunga com o novo paradigma emergente. Percebe que certo militantismo combativo descuidou dimensões humanas e religiosas. No entanto, alerta para o fato de que tal harmonia não se construa à custa da própria liberdade e responsabilidade pela história. Dialoga evangelizadoramente com esse novo movimento eco-místico, não o considerando luxo dos países ricos do 1º Mundo, como se julgou em dado momento, mas como causa nobre e maravilhosa, desde que se insira nele a dinâmica da libertação dos pobres. A riqueza esbanjadora e a pobreza degradante poluem, destroem a natureza e geram desarmonia interior. A harmonia cósmica pede sobriedade dos ricos e melhor condição de vida dos pobres, evitando assim a contaminação da natureza e as rupturas interiores. A TdL traz como proposta a teologia da solidariedade, o novo nome da TdL para a harmonia. Só há harmonia interior e exterior, se os seres humanos construírem sociedade solidária. Do contrário, a violência, a droga, a indústria armamentista, a poluição dos países ricos perdulários ameaçarão o futuro dos pobres a curto prazo e o da humanidade a longo.

Virada de gênero

No começo a TdL sofreu do patriarcalismo, do machismo, sem sensibilidade para a beleza e a força do movimento feminista, tanto no campo sociocultural, antropológico quanto teológico.

As teólogas da libertação abriram o próprio caminho. Aproveitaram a maior afinidade com setor muito caro à piedade latinoamericana: a devoção a Maria. Nesse sentido, desenvolveram uma mariologia desde a ótica de mulher. Além disso, enfrentaram o significado metodológico da teologia feminina, rompendo silêncio secular e marcando presença relevante na linha da libertação da mulher, sobretudo a pobre e oprimida. Abordaram o tema do corpo, delicado e tabu na teologia. Reivindicaram maneira própria de aproximar-se do mistério de Deus, valorizando as dimensões sapiencial, simbólica, celebrativa, espiritual, poética. Produziram uma teologia em “mutirão”.

CONCLUSÃO

Da abundante TdL escolhemos alguns pontos, muitos ficaram de fora.

A TdL está a sofrer mais do silêncio do que das pressões eclesiáticas e ideológicas do mundo neoliberal. Prefere-se não falar dela.

No entanto, os problemas que ela enfrentou desde o nascimento conservam a gravidade e até se tornaram piores. Sua missão continua ainda importante como esperança dos pobres e como vertente libertadora da fé cristã.

A TdL sofrera, em décadas anteriores, pressão vinda do mundo social político conservador e de instâncias institucionais da Igreja. Hoje a situação mudou. No mundo social, a convicção de que não há alternativa válida ao sistema de mercado sob a forma neoliberal gerou segurança tal que as vozes adversas são consideradas como entulhos do passado sem relevância.

As preocupações eclesiásticas, tanto no referente à doutrina quanto à prática pastoral, vão noutra direção. Teologicamente, a temática do diálogo inter-religioso preocupa doutrinalmente as instâncias romanas. A ameaça vem antes da Índia que está a elaborar teologia original em que se pensa a tradição cristã no horizonte de suas tradições religiosas antigas.

No mundo pastoral, a difusão e o crescimento das igrejas pentecostais e neopentecostais apavoram a hierarquia e aí ela concentra as energias. As estatísticas de países tradicionais, como o Brasil, assinalam verdadeira sangria do catolicismo para as outras igrejas em fluxo contínuo. Como estancá-la? Que rosto de Igreja mostrar que se torne atraente para os que a abandonaram? O Documento de Aparecida focaliza como primeiro destinatário do projeto evangelizador aqueles que deixaram a Igreja católica. Nesse contexto, a TdL e a pastoral da libertação saíram de foco, para bem e para mal.

Para bem, porque ela pode prosseguir o trabalho sem tantas críticas e cerceamentos eclesiásticos e disciplinares. E ela continua o trabalho em ambos os níveis, teórico e prático. Para mal, porque se defronta com desinteresse crescente e com a desistência por parte de muitos dos antigos protagonistas políticos e eclesiásticos.

No entanto, o mundo dos pobres continua crescendo e a situação torna-se pior. E eles permanecem sendo pergunta teológica à fé cristã. A incerteza deles aumenta. Cresce a exclusão. Por isso, a preocupação por eles continua sendo tônica da teologia e, neste sentido, esta é-lhes réstia de esperança além de perceber aí maior responsabilidade social e histórica. Ser apelo de conversão a todos é sua vocação missionária. Ser reflexão séria, coerente e regrada, é sua tarefa intelectual. Estar aberta a sempre novas reformulações, autocríticas, aperfeiçoamentos, é sua possibilidade de futuro.

A TdL ressente ainda do pouco tempo de existência e da falta de sério confronto crítico interno. Neste sentido, talvez grande parte ainda esteja por ser escrita. O seu futuro interliga-se profundamente ao destino de vida dos pobres no processo histórico vigente. Em outras palavras, ela só terá futuro, se, nas próximas décadas, a perspectiva a partir do reverso da história e a força histórica dos pobres ainda tiverem valor e forem pensáveis.



Perguntas para reflexão em grupo:
1. Na sua intelecção quais são os pontos nodais da Teologia da libertação?
2. Para sua vivência pessoal e comunitária que aspectos da Teologia da libertação tiveram e ainda têm importância?
3. Que ações pastorais a Teologia da Libertação provocou e está a provocar?


João Batista Libanio


Disponível em http://www.jblibanio.com.br/modules/smartsection/item.php?itemid=162. Acesso em 06 junho 2011.

Foto: Trem das Cebs e dos Intereclesiais das Cebs.

segunda-feira, 27 de junho de 2011

TdL em Mutirão 2

O PACTO DAS CATACUMBAS

O Pacto das Catacumbas da Igreja Serva e Pobre (1) , foi um documento redigido e assinado por 40 padres participantes do Concílio Ecumênico Vaticano II, entre eles, alguns bispos latino-americanos, no dia 16 de novembro de 1965, pouco antes da conclusão do Concílio. Este documento foi firmado enquanto compromisso de fé e vida após a eucaristia na Catacumba de Santa Domitila, fora dos muros de Roma.

Nós, Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II, esclarecidos sobre as deficiências de nossa vida de pobreza segundo o Evangelho; incentivados uns pelos outros, numa iniciativa em que cada um de nós quereria evitar a singularidade e a presunção; unidos a todos os nossos Irmãos no Episcopado; contando sobretudo com a graça e a força de Nosso Senhor Jesus Cristo, com a oração dos fiéis e dos sacerdotes de nossas respectivas dioceses; colocando-nos, pelo pensamento e pela oração, diante da Trindade, diante da Igreja de Cristo e diante dos sacerdotes e dos fiéis de nossas dioceses, na humildade e na consciência de nossa fraqueza, mas também com toda a determinação e toda a força de que Deus nos quer dar a graça, comprometemo-nos ao que se segue:

1) Procuraremos viver segundo o modo ordinário da nossa população, no que concerne à habitação, à alimentação, aos meios de locomoção e a tudo que daí se segue. Cf. Mt 5,3; 6,33s; 8,20.

2) Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata.

3) Não possuiremos nem imóveis, nem móveis, nem conta em banco, etc., em nosso próprio nome; e, se for preciso possuir, poremos tudo no nome da diocese, ou das obras sociais ou caritativas. Cf. Mt 6,19-21; Lc 12,33s.

4) Cada vez que for possível, confiaremos a gestão financeira e material em nossa diocese a uma comissão de leigos competentes e cônscios do seu papel apostólico, em mira a sermos menos administradores do que pastores e apóstolos. Cf. Mt 10,8; At. 6,1-7.

5) Recusamos ser chamados, oralmente ou por escrito, com nomes e títulos que signifiquem a grandeza e o poder (Eminência, Excelência, Monsenhor...). Preferimos ser chamados com o nome evangélico de Padre. Cf. Mt 20,25-28; 23,6-11; Jo 13,12-15.

6) No nosso comportamento, nas nossas relações sociais, evitaremos aquilo que pode parecer conferir privilégios, prioridades ou mesmo uma preferência qualquer aos ricos e aos poderosos (ex.: banquetes oferecidos ou aceitos, classes nos serviços religiosos). Cf. Lc 13,12-14; 1Cor 9,14-19.

7) Do mesmo modo, evitaremos incentivar ou lisonjear a vaidade de quem quer que seja, com vistas a recompensar ou a solicitar dádivas, ou por qualquer outra razão. Convidaremos nossos fiéis a considerarem as suas dádivas como uma participação normal no culto, no apostolado e na ação social. Cf. Mt 6,2-4; Lc 15,9-13; 2Cor 12,4.

8) Daremos tudo o que for necessário de nosso tempo, reflexão, coração, meios, etc., ao serviço apostólico e pastoral das pessoas e dos grupos laboriosos e economicamente fracos e subdesenvolvidos, sem que isso prejudique as outras pessoas e grupos da diocese. Ampararemos os leigos, religiosos, diáconos ou sacerdotes que o Senhor chama a evangelizarem os pobres e os operários compartilhando a vida operária e o trabalho. Cf. Lc 4,18s; Mc 6,4; Mt 11,4s; At 18,3s; 20,33-35; 1Cor 4,12 e 9,1-27.

9) Cônscios das exigências da justiça e da caridade, e das suas relações mútuas, procuraremos transformar as obras de "beneficência" em obras sociais baseadas na caridade e na justiça, que levam em conta todos e todas as exigências, como um humilde serviço dos organismos públicos competentes. Cf. Mt 25,31-46; Lc 13,12-14 e 33s.

10) Poremos tudo em obra para que os responsáveis pelo nosso governo e pelos nossos serviços públicos decidam e ponham em prática as leis, as estruturas e as instituições sociais necessárias à justiça, à igualdade e ao desenvolvimento harmônico e total do homem todo em todos os homens, e, por aí, ao advento de uma outra ordem social, nova, digna dos filhos do homem e dos filhos de Deus. Cf. At. 2,44s; 4,32-35; 5,4; 2Cor 8 e 9 inteiros; 1Tim 5, 16.

11) Achando a colegialidade dos bispos sua realização a mais evangélica na assunção do encargo comum das massas humanas em estado de miséria física, cultural e moral - dois terços da humanidade - comprometemo-nos: a participarmos, conforme nossos meios, dos investimentos urgentes dos episcopados das nações pobres; a requerermos juntos ao plano dos organismos internacionais, mas testemunhando o Evangelho, como o fez o Papa Paulo VI na ONU, a adoção de estruturas econômicas e culturais que não mais fabriquem nações proletárias num mundo cada vez mais rico, mas sim permitam às massas pobres saírem de sua miséria.

12) Comprometemo-nos a partilhar, na caridade pastoral, nossa vida com nossos irmãos em Cristo, sacerdotes, religiosos e leigos, para que nosso ministério constitua um verdadeiro serviço; assim: esforçar-nos-emos para "revisar nossa vida" com eles; suscitaremos colaboradores para serem mais uns animadores segundo o espírito, do que uns chefes segundo o mundo; procuraremos ser o mais humanamente presentes, acolhedores...; mostrar-nos-emos abertos a todos, seja qual for a sua religião. Cf. Mc 8,34s; At 6,1-7; 1Tim 3,8-10.

13) Tornados às nossas dioceses respectivas, daremos a conhecer aos nossos diocesanos a nossa resolução, rogando-lhes ajudar-nos por sua compreensão, seu concurso e suas preces.

AJUDE-NOS DEUS A SERMOS FIÉIS!



Perguntas para reflexão em grupos:

1) O que mais chamou a atenção na leitura do Pacto das Catacumbas?

2) É viável colocar em prática hoje em dia o Pacto das Catacumbas no grupo de jovens, na comunidade eclesial de base, na Paróquia, na (arqui) diocese? Como seria feito isso?

3) O Pacto das Catacumbas possui originalmente 13 itens. O grupo de jovens, a comunidade eclesial de base teria coragem de escrever outros itens ou um novo pacto? Quantos itens seriam? Quais seriam as temáticas?



(1) KLOPPENBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II. Petropólis: Vozes, 1966.


Foto de uma das catacumbas de Santa Domitila - Roma.

domingo, 26 de junho de 2011

TdL em Mutirão 1

ESPIRITUALIDADE, TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO & JUVENTUDE

No princípio:

O objetivo principal deste texto e dos outros que virão é explicar, é esclarecer, para a juventude que participa das comunidades eclesiais de base o que é a Espiritualidade da Libertação (EdL) e a Teologia da Libertação (TdL), quem são seus principais teóricos e pensadores, e como elas e eles ajudam na caminhada e na construção da Civilização do Amor.

A EdL e a TdL se originaram da e na experiência das primeiras comunidades cristãs na divulgação do Evangelho do Moreno de Nazaré, passando pela iniciativa da Ação Católica Geral e Especializada até se tornarem um movimento extraordinário na segunda metade do século XX na América Latina. Começam a germinar de fato nos desdobramentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962 – 1965), com a abertura da Igreja Católica à modernidade, se afirmavam termos como: a Igreja dos Pobres, aggiornamento, sinais dos tempos. O grande nome do Concílio Vaticano II foi o arcebispo de Recife e Olinda: D. Hélder Pessoa Câmara, que alguns anos antes havia criado a CNBB e o CELAM; o arcebispo não fez nenhum discurso, seu trabalho era de articulação e organização nos bastidores, ou melhor, nas catacumbas. D. Hélder foi um dos mentores do Pacto das Catacumbas, uma declaração de extrema beleza, ternura e despojamento, assinado por bispos, que tinham como maior objetivo servirem humildemente, sem nenhuma pompa, honrarias ou benefícios o Povo Santo de Deus.

Na América Latina, o ateísmo nunca foi o principal problema. O problema de ontem e de hoje é a pobreza institucionalizada (econômica e politicamente), que é uma afronta ao Deus Abbá de Jesus de Nazaré; a vivência religiosa irá exigir nos anos seguintes ao Concílio uma gradual e radical transformação da sociedade.

Os novos ares soprados pelo Concílio chegaram na América Latina e deram frutos saborosos com a Conferência dos Bispos em Medellín (1968 – Colômbia). Estava jogada no chão adubado com sangue de Nossa América, as sementes da EdL e da TdL.

Em 1971, o padre Gustavo Gutiérrez escreve a obra fundante: Teologia da Libertação – Perspectivas; dando início a uma série de novos e intensos escritos a partir e sobre a EdL e a TdL. Do lado protestante, os primeiros escritos nesta direção brotam do coração de Rubem Alves. Em 1972, o franciscano Leonardo Boff escreve Jesus Cristo Libertador, iniciando no Brasil todo o debate em torno da EdL e de sua TdL. Em 09 de abril de 1986, o Beato João Paulo II escreveria a CNBB uma carta com estas palavras: “Na medida em que se empenha por encontrar aquelas respostas justas – penetradas de compreensão para com a rica experiência da Igreja neste País, tão eficazes e construtivas quanto possível e ao mesmo tempo consonantes e coerentes com os ensinamentos do Evangelho, da Tradição viva e do perene Magistério da Igreja – estamos convencidos, nós e os Senhores, de que a Teologia da Libertação é não só oportuna mas útil e necessária. Ela deve constituir uma nova etapa – em estreita conexão com as anteriores – daquela reflexão teológica iniciada com a tradição apostólica e continuada com os grandes padres e doutores, com o magistério ordinário e extraordinário e, na época mais recente, com o rico patrimônio da Doutrina Social da Igreja, expressa em documentos que vão da Rerum novarum à Laborens exercens.”



Emerson Sbardelotti

Estudante de Teologia, Historiador, Turismólogo

Coordenador Teológico do Instituto João Maria Vianney - Teologia para Leigos e Agente de Pastoral Leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida – Cobilândia, Vila Velha - ES


Mural de Maximino Cerezo Barredo