terça-feira, 18 de outubro de 2011

TdL em Mutirão 36

JUVENTUDE: ROSTO DA TRINDADE.


O presente artigo tem como objetivo apresentar a juventude como rosto da Trindade Santa. A face mais bonita do Deus Uno e Trino que armou sua tenda no meio da humanidade, que se revelou, tornando-se assim uma indizível aventura de conhecer a Deus.

É uma grande aventura pensar e falar sobre o Deus de nossa fé, principalmente quando se pode cantar como faz a juventude que se prepara para o Dia Nacional da Juventude – 25 anos da Pastoral da Juventude Capixaba que acontecerá no último domingo do mês de outubro de 2011, na Praça do Papa, em Vitória - ES [1] :

“Dizem que o sol, deixou de brilhar

Que as flores mais belas não perfumam mais

Os jovens teriam deixado de amar

De crer na esperança de poder mudar

Que as lutas e os sonhos o vento espalhou

E que envelheceram as forças do amor

Se fosse assim que digam vocês

De quem é o rosto que ainda sorri

De quem é o grito que nos faz tremer

Defendendo a vida, o modo de ser

De quem são os passos marcados no chão

Unindo o compasso de um só coração

Enquanto existir um raio de luz

E uma esperança que a todos conduz

Existe a certeza, plantada no chão

Ternura e beleza não acabarão

Pois a juventude que sabe guardar

Do amor e da vida não vai descuidar

O rosto de Deus é jovem também

E o sonho mais lindo é ele quem tem

Deus não envelhece, tampouco morreu

Continua vivo no povo que é seu

Se a juventude viesse a faltar

O rosto de Deus iria mudar”.

Sobre a juventude há muitos pontos de vista para analisá-la; indico a classificação mais objetiva e sintética, construída em mutirão, que parte da perspectiva cristã católica e comprometida com milhares de grupos de jovens espalhados pelo Brasil.

As quatro visões de juventude [2] :

1. Visão Biocronológica: define a juventude em termos de idade, etapa de transição. Aquela que tem de 15 a 24 anos [3] .

2. Visão Psicológica: identifica a juventude com os conflitos pessoais em que tem a vida nas mãos, mas não tem o reconhecimento e a capacidade, etapa de construção da identidade: tempo de opções e definições.

3. Visão Sociológica: vê na juventude um grupo social e, dentro dele, diferentes setores.

4. Visão Cultural-Simbólica: procura ver a juventude em seu habitat cultural, produzindo movimentos culturais que acentuam a estética e o lúdico.

Para DICK (2003), estaria faltando, entre essas visões uma quinta: a Visão Jurídica ou Legal de Juventude – aquela que impera em muita leitura ou abordagem a respeito do tema [4] .

No Brasil, tanto as diretrizes da Secretaria Nacional de Juventude como o Plano Nacional de Juventude, definem como jovens aqueles que têm entre 15 e 29 anos. Mas o que é juventude?

LIBANIO (2004), diz que há um olhar duplo: o da sociedade para o jovem e o do jovem para si mesmo. A sociedade olha o jovem e o considera em fase importante do desenvolvimento de sua personalidade. Mas também, o vê como alguém subordinado e ainda submetido a uma marginalização do trabalho e das funções políticas. O jovem olha a si mesmo e entra numa idade de apropriação das diferenças que o afetam no campo sociopsicológico, ao mesmo tempo que se prepara para enfrentar situações adultas diferenciadas, passando do mundo particularista da família para o mundo universalista do trabalho e das relações sociais. Os grupos de jovens ajudam a integrar o modelo de família com a vida em sociedade. A escola surge como lugar intermediário da socialização entre a sociedade e a família [5] .

A CNBB (2007), afirma que, conhecer os jovens é a condição prévia para evangelizá-los. Não se pode amar nem evangelizar a quem não se conhece. Se busca conhecer a geração de jovens cuja evangelização se apresenta como um dos grandes desafios da Igreja neste início do século XXI. Destaque para a subjetividade, para as novas expressões da vivência do sagrado e a centralidade das emoções, enquanto elementos da nova cultura pós-moderna que influenciam no processo de evangelização dos jovens e no fenômeno da indiferença de uma parcela da juventude face à Igreja. (...) A evangelização da juventude interessa muito à Igreja e aos seus pastores. Temos um compromisso sério com a formação das novas gerações que, pressionadas por tantas propostas de vida, necessitam de muito discernimento,de coragem, de verdadeiros caminhos e, principalmente, de nossa presença amiga: “Os jovens têm o direito de receber da Igreja o Evangelho e de ser introduzidos na experiência religiosa, no encontro com Deus e no contato com as riquezas da fé cristã. E os pastores da Igreja têm grande desejo de lhes comunicar a Boa-Nova de Jesus Cristo e de acolhê-los na comunidade eclesial”. Estamos certos de que o presente e o futuro da própria Igreja dependem desta nossa opção “afetiva e efetiva” por eles, como, também, a nossa sociedade progredirá à medida que puder contar com cidadãos verdadeiramente capacitados a testemunhar, defender e propagar os valores do Evangelho, todos eles a favor da vida plena para o ser humano. (...) Desejamos, juntos, abrir caminhos para favorecer o desenvolvimento dos jovens, quanto ao anúncio do querigma, à educação aos valores cristãos, à formação bíblica e teológica, à iniciação à vida litúrgica, ao ensino religioso nas escolas e universidades, à educação para a solidariedade e para a fraternidade; à superação de preconceitos; à educação psicoafetiva; à formação na ação e para a cidadania. Estamos convictos de que a formação da juventude contribui para a promoção da dignidade de sua vida em todos os aspectos [6] .

FORTE (2005), diz que a Igreja provém da Trindade, é estruturada à imagem da Trindade e ruma para o acabamento trinitário da história. (...) A Igreja vem da Trindade: o universal desígnio salvífico do Pai, a missão do Filho, a obra santificante do Espírito edificam a Igreja como “mistério”, obra divina no tempo dos homens, preparada desde as origens, reunida pela Palavra encarnada, sempre de novo vivificada pelo Espírito Santo. A Igreja é ícone da Trindade Santa: por uma “não-mediocre analogia”, ela é comparada ao mistério do Verbo encarnado, na dialética do visível e do invisível, ao mesmo tempo em que a sua “comunhão” – una na diversidade das Igrejas locais, dos seus carismas e ministérios – reflete a comunhão trinitária. (...) A Igreja orienta-se para a Trindade: é Igreja dos peregrinos na conversão e reforma contínuas, em comunhão com a Igreja celeste, preparando-se desde já para a glória final [7] .

Em Medellín, a Igreja vê na juventude a constante renovação da vida da humanidade. A juventude é o símbolo da Igreja, chamada a uma constante transformação de si mesma. Por isso ela se esforça por desenvolver uma pastoral de conjunto, uma Pastoral da Juventude autêntica.

Em Puebla, a Igreja diz que a juventude é uma atitude face à vida na sua etapa transitória e destaca seus traços mais característicos: seu espírito de aventura, sua capacidade criadora, seu desejo de liberdade, o fato de serem sinal de alegria e felicidade, exigindo autenticidade, simplicidade e humildade. A Igreja confia nos jovens, sendo eles a sua esperança. Eles são os dinamizadores do corpo social e do corpo eclesial, por isso a Igreja faz a evangélica opção preferencial pelos jovens com vistas à sua missão no continente.

Em Santo Domingo, a Igreja quer abrir espaços de participação para a juventude através de uma pedagogia da experiência, promovendo o protagonismo através do método VER-JULGAR-AGIR-REVER-CELEBRAR.

Em Aparecida, a Igreja propõe aos jovens o encontro com Jesus Cristo vivo à luz do Plano de Deus, que lhes garanta a realização plena de sua dignidade de ser humano; privilegiando na Pastoral da Juventude processos de educação e amadurecimento na fé como resposta de sentido e orientação de vida. A Pastoral da Juventude ajudará os jovens a se formar de maneira gradual, para a ação social e política e a mudança de estruturas, conforme o desejo do Papa João XXIII um mês antes da abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II: “A Igreja se apresenta tal como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”.

BOFF (1999), diz que a concepção trinitária de Deus nos propicia uma experiência global do mistério divino. Cada ser humano se move dentro de uma tríplice dimensão: na transcendência, da imanência e da transparência. Pela transcendência ele se ergue para cima, rumo às origens de si mesmo e às referências supremas. O Pai emerge nesta experiência, pois Ele é o Deus da origem sem ser originado, é o Deus do princípio sem ser principiado, é o Deus da fonte da qual tudo promana. É a referência última. Pela imanência o ser humano se encontra consigo mesmo, com o mundo a ser organizado, com a sociedade que ele constrói em relações horizontais e verticais. A imanência constitui o espaço da revelação humana. O Filho é por excelência a revelação do Pai; em sua encarnação assume a situação humana como é, em sua grandeza e decadência. Ele quer uma sociedade fraterna e sororal que reconhece suas raízes. Pela transparência queremos ver unida a transcendência com a imanência, o mundo humano com o mundo divino, a tal ponto que, respeitadas as diferenças, se façam transparentes. No esforço humano queremos experimentar o dom de Deus; anelamos por um novo coração e pela transformação do universo. O Espírito Santo constitui a força de amorização divina e humana, a transfiguração de tudo. Que seria o ser humano se não tivesse o Pai, se não se enraizasse em algo maior e não fosse envolvido num mistério de ternura e de aconchego? Seria como um bólido perdido no espaço e um peregrino sem rota e sem rumo. Que seria de nós, se não tivéssemos o Filho, se não soubéssemos de onde viemos, se não acolhêssemos a cada instante a vida recebida como dom, se não pudéssemos amar o Pai maternal ou a Mãe paternal? Que seria da pessoa humana se não tivesse relações dialogais e fraternas, se não pudesse abrir-se a um tu? Não seria apenas um peregrino sem rota e sem rumo, seria um caminhante solitário num mundo agressivo e opaco. Que seria do ser humano sem o Espírito Santo, sem um mergulho em seu próprio coração, sem a força de ser e de transformar a criação? Seria um peregrino sem entusiasmo e privado da coragem necessária para a caminhada. Sem o Espírito não poderíamos crer em Jesus nem entregar-nos confiadamente ao regaço do Pai. Assim como a transcendência, a imanência e a transparência constituem a unidade dinâmica e integral da existência, de forma análoga o Pai, o Filho e o Espírito Santo se unificam integradoramente na comunhão recíproca plena e essencial. Cada pessoa humana surge como imagem e semelhança da Trindade; o pecado introduz uma ruptura nesta realidade, sem destruí-la totalmente. A sociedade foi eternamente querida por Deus para ser sacramento da comunhão trinitária na história; o pecado social e estrutural denigre esta vocação que sempre permanece como um chamamento a ser atendido mediante as libertações históricas que visam criar as condições para que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possam ser significados no tempo [8] .

A juventude experimenta a Trindade como o centro ardente da fé pois ela vem dos Apóstolos; a mesma fé trinitária que a Igreja sempre professou a partir de Jesus de Nazaré.

[1] TREVISOL, Jorge. O Mesmo Rosto. Intérprete: Artistas Capixabas. In: DNJ - DIA NACIONAL DA JUVENTUDE. 25 anos da PJ Capixaba - Chega de Violência e Extermínio de Jovens. Vitória: Independente, 2011, 1DVD, faixa 1.

[2] CELAM - Conselho Episcopal Latino-Americano. Seção Juventude - SEJ. Civilização do Amor: Tarefa e Esperança. Orientações para a Pastoral da Juventude Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1997.

[3] A UNESCO defende esta concepção.

[4] DICK, Hilário. Gritos Silenciados, Mas Evidentes - Jovens Construindo Juventude na História. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

[5] LIBANIO, J.B. Jovens em Tempos de Pós-Modernidade - Considerações socioculturais e pastorais. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

[6] CNBB. Evangelização da Juventude - Desafios e Perspectivas Pastorais. São Paulo: Paulinas, 2007.

[7] FORTE, Bruno. A Igreja Ícone da Trindade. 2a.ed. São Paulo: Loyola, 2005.

[8] BOFF, Leonardo. A Trindade e a Sociedade. 5a.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

Emerson Sbardelotti

TdL em Mutirão 35

IGREJA DOS POBRES: FUNDAMENTO DE UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO 

 
INTRODUÇÃO

 
No meio do século passado, a Igreja Católica se encontrava em uma encruzilhada entre prosseguir com uma dogmática que esteve presente por toda a Idade Média ou refletir as mudanças advindas do mundo moderno. Tínhamos uma atmosfera de tensão que se refletia na Cúria romana, a saber: de um lado estava a realidade centralizadora que sempre caracterizou a estrutura eclesial e do, outro, uma proposta de abertura para o diálogo com a realidade moderna, com suas dúvidas, desconfianças e com seu choque de injustiças.
Neste artigo, pretendemos refletir em que panorama se desenvolveu a Igreja dos pobres na América Latina, sua fundamentação teológica e o que constitui efetivamente esse ser dos pobres como base para uma Teologia da Libertação. A pesquisa tem como foco analítico os seguintes pontos: (1) João XXIII e o Concílio Vaticano II, (2) Medellín e a Igreja da América Latina, (3) Teologia da Libertação e (4) Eclesiologia da Libertação.

 
1. JOÃO XXIII E O CONCÍLIO VATICANO II

 
O papel de João XXIII no Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi de singular importância. Não somente pelo ato de conclamar o referido concílio, mas por introduzir nele uma perspectiva de atualização para a Igreja mundial (aggiornamento). É inegável que grande foi a surpresa quando o "papa bom”, até então considerado um papa de transição, abriu as portas da Igreja que pareciam seladas para o mundo moderno. O Espírito acordara de um sono duradouro, era, portanto, hora de trabalhar para abri-lhe caminho. (C.f SANTOS, 2OO7, p.19).
João XXIII expressa na bula Humanae Salutis o anseio pelo qual passou ao realizar o primeiro anúncio do Concílio (25 de janeiro de 1959): "foi como a pequena semente que depusemos com ânimo e mãos trêmulas”. Nada mais humano ao realizar ato tão divino. O Papa sentia que a Igreja tinha por obrigação demonstrar vitalidade, jovialidade (renovação) e irradiar novas luzes ao surgimento de uma nova era (C.f João XXIII, 1961, p 254). Esse aggiornamento era mais que necessário, pois a mais de 16 séculos a Igreja esteve presa a uma dogmática intra ecclesia para, enfim, anunciar a sua abertura ad extra.
Vejamos o que diz João XXIII em seu pronunciamento às vésperas do Concílio Vaticano II, datado de 11 de setembro de 1962: "Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a, Igreja dos pobres” (João XXIII apud Aquino, 2005, p 209). Apesar de não termos tido no concílio o aprofundamento que necessitara a Igreja dos pobres, a fala de João XXIII aponta para um viés que até então era pouco debatido: o de uma Igreja que deve assumir em si a perspectiva dos que estão à margem do mundo.
O Espírito deu sinais de que essa discussão não passaria despercebida, como podemos comprovar através de históricas intervenções. É de especial atenção a manifestação do cardeal Lercaro:
"O mistério de Cristo nos pobres não aparece na doutrina da Igreja sobre si mesma e, no entanto, essa verdade é essencial e primordial na revelação (...). É nosso dever colocar no centro deste Concílio o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres” (Lercaro, apud Aquino, 2005, p.209).
Essa manifestação resultou posteriormente resultou em uma reflexão contida no capítulo 8 do documento conciliar Lumen Gentium. Corroborando com Lercaro destacamos o pronunciamento do bispo de Tornai, Charles-Marie Himmer, pelo significado que expressa e por seu peso, quando em aula conciliar afirmou: "primus lócus in Ecclesia pauperibus resevandus est” (o primeiro lugar na Igreja é reservado aos pobres). De fato, a causa dos pobres estivera longe de ser ponto central do concílio, a não ser por intervenções pontuais, pois "esta não era a temática que constituía efetivamente o espírito conciliar” (SOBRINO, 1982, p.101).
Havia no concílio um corpo de bispos que representavam os países do "terceiro mundo” e que gozavam de bastante simpatia do papa João XXIII. Nele estava presente nosso saudoso Dom Helder Câmara. Astuto e movido por uma insistência evangélica torna-se uma das referências do grupo da "Igreja dos pobres”. Certa vez, perguntado por um jornalista se esse grupo consistia mais um grupo de pressão, respondeu:
Gosto muito da expressão que nos vem de nossos irmãos franceses: "Igreja servidora e pobre”. O Santo Espírito nos interpelou, nos convocou. Abriu-nos os olhos sobre o dever de cristãos, sobretudo de pastores, a fim de agirmos como o Cristo que, pertencendo a todos, se identificou com os pobres, os oprimidos, com todos aqueles que sofrem. Começamos a procurar como a Igreja toda, especialmente cada um de nós, poderia ser "servidor e pobre” (BEOZZO, 1993, p.95).
Essa "pressão” vira "expressão” de vida quando, ao término do Concílio, celebrando a eucaristia na catacumba de Domitila, o grupo da Igreja dos pobres firma um pacto de propagação de uma Igreja servidora e pobre, para "obterem a graça de serem plenamente fiéis ao Espírito de Jesus „que vos consagrou e vos enviou para evangelizar os pobres‟ (Lc 4,18)” (C.f BEOZZO, 1993, p. 96). Esse compromisso ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas[1]. Nele estiveram presentes alguns bispos brasileiros[2], que tinham por objetivo expressar com verdade aos "irmãos no Episcopado” o compromisso de viverem uma vida de pobreza, de rejeitar todos os símbolos ou privilégios do poder e de fazer dos pobres o local por excelência para se exercer os ministérios episcopais. Os bispos encerram o texto com um "ajuda-nos Deus a sermos fiéis”, demonstrando que uma Igreja dos pobres é, de fato, uma fidelidade a Deus.

 
2. MEDELLÍN E A IGREJA DA AMÉRICA LATINA

 
O Episcopado latino-americano animado em colocar em prática as decisões do Vaticano II, marcou passo na história, quando após três anos do término do Concílio, realizou a segunda Conferência Episcopal latino-americana na cidade de Medellín.
Medellín refaz, num certo sentido, o Vaticano II e, em muitos pontos dá um passo além: aí emerge pela primeira vez a importância das comunidades de base, esboça-se a teologia da libertação, aprofunda-se a noção de justiça e de paz ligadas aos problemas de dependência econômica, coloca-se o pobre no centro da reflexão do continente (BEOZZO, 1993, p. 117-118).
Medellín prossegue na reflexão iniciada no Vaticano II e por seu incentivador João XXIII. O Papa bom, através de suas encíclicas sociais, toca de forma comprometedora a Igreja da América Latina (Cf. BEOZZO, 1995, P.118). No decorrer do Concílio, como vimos antes, surgiu uma corrente que colocava os pobres como centro da ação evangelizadora e por isso comprometia-se com eles. É, pois, nesta linha que se encontravam os bispos que participam de Medellín.
Conscientes da realidade do continente, os bispos reunidos em Medellín reconhecem que a Igreja não poderia ficar indiferente as injustiças sociais existentes na América Latina. O documento que traz as Conclusões de Medellín está carregado de uma profunda solidariedade para com o povo que sofre. Nele os bispos assumem que a Igreja da América Latina esteve letárgica e, por isso, sentem-se obrigados, como pastores, a dar voz aqueles que não a têm:
"Um surto de clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte. Agora nos estais escutando em silêncio, mas ouvimos o grito que sobe de vosso sofrimento...” (MEDELLÍN, 1979, P.143).
Foi no alvorecer de Medellín que se gestou a Teologia da Libertação (Cf. Oliveros, 1990, p. 30). Isso se deu por uma coesão no episcopado latino-americano e por uma situação histórica popular de opressão e libertação. Na Conferência, a Igreja se compromete a denunciar a carência injusta dos bens necessários para sobrevivência da maioria na América Latina e compromete-se a viver juntos deles (Cf. MEDELLÍN, 1979, p.145). Orienta, portanto, que seus trabalhos pastorais sejam realizados nos setores mais pobres e necessitados.
Percebe-se, todavia, que a Igreja se apropriou da temática dos pobres. Não como meros receptores de um "assistencialismo caridoso”. Em Medellín a Igreja se faz pobre! Isto é, assume a missão deixada por Jesus que sendo rico se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9), e compromete-se a "apresentar ao mundo um sinal claro e inequívoco da pobreza do Senhor”. (MEDELLÍN, 1979, p. 150).
A semente está lançada e começa a germinar no seio das comunidades latino-americanas uma experiência de fé que emerge da vida ameaçada e de uma Igreja profética que ouve o clamor do povo. Nasce nas comunidades de base um novo modo de se fazer teologia, fruto de uma prática pastoral anunciada por Medellín.

 
3. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

 
A teologia da libertação nasce do rejuvenescimento que o Vaticano II causou na Igreja da América Latina. Pela primeira vez na história, surge um modo de se fazer teologia tendo como premissa a situação dos povos e das pessoas que constituem o continente latino-americano[3]. A teologia da libertação traz a realidade dos povos para ser aprofundada a luz da fé, oferecendo uma nova visão da missão da Igreja no nosso continente.
Medellín, como vimos anteriormente, destacou de forma profética a situação de injustiça em que viviam os povos de diversos países latino-americanos e esta constatação virou uma bandeira de muitos em favor dos menos favorecidos, o que impulsionou a vários cristãos a comprometerem-se em desenvolver uma nova teologia: "uma nova consciência eclesial começou a se formular a partir de um novo modo de viver a fé daqueles que estavam comprometidos com os pobres e sua libertação” (OLIVEROS, 1990, p.30). Cria-se uma nova concepção do que é fazer teologia na América Latina, a novidade da teologia da libertação foi descobrir que não somente falar de Cristo configura a sua presença no meio dos pobres. Seu pensamento transformador foi se compromete com as pessoas exploradas, a maioria em nosso continente. O próprio Jesus em oração nos diz: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e aos inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos” (Mt 11, 25-27). De fato, é nos pequeninos desta terra que se configura mais claramente o Mistério de Deus.
Ao contrastar as desigualdades institucionalizadas na América Latina, viu-se que o estado de pobreza que a maioria esmagadora se encontrava não poderia ser a vontade de Deus. A experiência de Moisés com o povo de Israel serviu de base bíblica para se (re)compreender a missão da Igreja. A situação desumana de escravidão e pobreza impulsionaram as reflexões à luz da Palavra de Deus. Viver a Boa Nova implicava necessariamente em uma nova consciência do "ser” e do "como ser” Igreja. A referência do "ser Igreja” está vinculada ao modo de como Igreja a (instituição) se apresenta ao se contrastar com uma realidade desumana e ser tocada por ela, à de se buscar novas práticas pastorais que respondam as necessidades do povo que está preso em cativeiro[4]. Por outro lado, a idéia do "como ser” quer um esforço de reflexão epistemológica da Igreja aos novos desafios e isso é o que faz uma eclesiologia da libertação.
Uma fisionomia nova, um rosto novo de Igreja que tem o Espírito de Medellín foi a base para o desenvolvimento da eclesiologia da libertação. As Comunidades Eclesiais de Base são o exemplo da reunião de cristãos (ecclesia) comprometidos com a fé no Deus de Jesus, e por isso, atuantes no processo de libertação do povo.
A Igreja dos pobres na América Latina não nasce somente de um esforço acadêmico. Ela nasce, primeiramente, da experiência do povo que sofre. Mesmo sem a idéia de teologia o povo latino-americano se recusa a entregar-se a uma estrutura de morte, por isso, emerge dele várias práticas libertadoras[5]. Somente a partir desta prática é que a Igreja se vê impulsionada a fazer uma reflexão eclesiológica. Essa reflexão é caracterizada como o ato segundo, pois o ato primeiro é práxis (GUTIERREZ, 2000, p.18), uma reflexão crítica a luz do Evangelho sobre a vida e a prática cristã eclesial, abre-se neste contexto uma nova forma de anunciar o querigma.

 
4. ECLESIOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

 
A teologia da libertação viu na Igreja dos pobres a fidelidade mais singular à pessoa de Jesus Cristo. Nela, se encontra um Deus que ouve o clamor do povo (Ex 3,7b), essa experiência eclesial se tornou a base práxica para sua sustentação teológica.

 
A Igreja dos pobres despertou várias desconfianças a respeito da sua unidade eclesial, como uma continuação da Igreja de Jesus Cristo: Una, Santa, Católica e Apostólica. Vejamos, portanto, como a Igreja dos pobres não fere essa unidade, pelo contrário, à torna mais explicita, uma vez que tem os pobres como o centro de sua reflexão teológico/pastoral.
Um só Deus, um só Senhor, um só batismo, um só Espírito, como expressa São Paulo.

 
Na verdade existe um só Senhor, Jesus Cristo, e Jesus histórico, crucificado, servo de Javé e ressuscitado; existe um só Deus, que quer vida aos homens, escuta o clamor dos oprimidos, morre com eles na história e mantém sempre vivos os gemidos de parto de uma nova criação; existe um só Espírito, renovador da história, doador de vida e que fala pelos profetas de outrora e pelos atuais (SOBRINO, 1982, p.111).
Podemos perceber a unidade dos pobres desta Igreja, nela se expressa os pobres como sujeitos ativos desta realização histórica com todos os percalços que a situação de pobreza os coloca. Quando a Igreja se expõe a ouvir as mazelas pelas quais passam os pobres, a enxergar o exemplo de fé que é a vida deles, ela realiza o milagre de socializar que o núcleo da fé é algo que não se divide, anuncia-se. Não se trata de uma predileção de ordem social. Trata-se, sobretudo, de uma unidade com todas as instituições e pessoas de bem, agora de um formato macro, que tem os pobres como fio condutor da ligação com o Ressuscitado.

 
A. A santidade contida na Igreja dos pobres

 
A característica de "santa” atribuída a Igreja é uma característica lógica, pois nela se configura um sinal de salvação, e é ela a continuadora do sacramento histórico do amor de Deus, seria uma contradição dizer que ela não é santa (SOBRINO, 1982, p.114). A problemática se estabelece em reconhecer que a Igreja como instituição imersa em uma realidade está em si, configurada em uma estrutura de pecado é, portanto, também, pecadora. Quem concede a característica de santidade a Igreja, é Deus, "e assim não cremos simplesmente na Igreja santa, mas em Deus que santifica a Igreja” (SOBRINO, 1982, p.115).
A Igreja dos pobres reconhece a dimensão pecadora e santa da Igreja. O que a Igreja dos pobres faz é desenvolver características concretas ao amor e ao pecado, nos mostra que para dar visibilidade a santidade contida na Igreja, a práxis do amor tem que ser concreta (perdoem-me a redundância), não como propostas ou discursos "benevolentes”, mas de recriar uma nova realidade do seio de suas comunidades. Para a Igreja dos pobres, a santidade não está contida no estereótipo que vestem seus representantes, mas, aí a pirâmide se inverte, a santidade salvará o mundo na medida em que a Igreja se autoassuma como serva. A santidade nasce a partir de baixo, da solidariedade que brota dos pobres, da comunhão com aqueles que foram perseguidos e martirizados. "Optar pelos pobres é automaticamente optar pela forma de santidade do Servo” (SOBRINO, 1982, p.118). Recupera, portanto, a dimensão de santidade que fora disseminada por Jesus, a quenose. Sem essa santidade a Igreja não encontraria em si a verdade que a constitui.

 
B. Sua dimensão universal

 
A catolicidade que constitui a Igreja é a representação da sua universalidade, isto é, a Igreja enquanto católica tem como centro a totalidade do mundo, o que implica:
Visto que nem todos são "homens” da mesma maneira no que se refere a seus meios, direitos e liberdades, aquela comunidade em que todos verão conjuntamente a glória de Deus é criada através da eleição dos humildes, ao passo que os poderosos incorrem no juízo de Deus (SOBRINO, 1982, p. 119-120).
Isso não quer dizer, que se fira a universalidade, pelo contrário, o fato de ser universal, carrega em si uma tradição histórica pelos os que sempre estiveram escondidos da totalidade. O que a Igreja dos pobres faz, é demonstrar que essa parcialidade para com os que sofrem é uma forma práxica para um amor universal. Nesse mesmo sentido, percebe-se que a Igreja dos pobres em nível "local” desenvolve claramente uma originalidade com personagens próprios[6] e a partir de figuras do passado cria uma autoconsciência para reler sua a história.

 
C. Tradição apostólica

 
A apostolicidade que constitui a Igreja serve para demonstrar a continuidade de sua ligação direita com os apóstolos, em ordem cronológica e a continuação de uma estrutura eclesial apostólica. A Igreja se constitui em si mesma missionária, "ela existe para evangelizar” (Evangelii Nuntiandi, 1975, n.14). E evangelizar é afirmar que todo o caráter próprio da Igreja (oração, vida religiosa, escuta da Palavra, etc.) não teria sentido pleno senão se converter em testemunho.
A Igreja dos pobres é uma Igreja autenticamente missionária, ela adquire prioritariamente essa característica porque se faz pobre. Isso quer dizer, que essa primazia da essência se configurou mais verdadeira quando os pobres não foram somente os destinatários da missão, mas quando eles foram constituídos missionários. "Não basta dizer que a práxis é o ato primeiro. É necessário considerar o sujeito histórico desta práxis: os que até agora estiveram ausentes da história” (GUTIERREZ, 1977, p.42).
Com o receptor da missão sendo missionário, surge aí uma conotação própria da sua realidade, uma vez que os pobres tornam-se anunciadores da Boa Nova, tornam-se, também, denunciadores das estruturas pecaminosas. Cabe a Igreja perceber que quando ela se converte em Igreja dos pobres esta se encontra mais fielmente ligada a sua tradição, pois, qualquer pessoa que não está inserida na realidade de sofrimento, desesperança, humilhação que passa a grande maioria dos habitantes desta terra, não refletirá com propriedade a tradição apostólica. Os pobres oferecem a direção a ser seguida!
Percebe-se, portanto, que uma Igreja que se constitui em: Una, Santa, Católica, Apostólica e dos pobres, desenvolve em si uma ortodoxia mais propriamente evangélica.

 
Veremos nos dois pontos seguintes de que forma o ser dos pobres configura em si um critério de identidade singular ao passo que é constitutivo da Igreja de Jesus e como os sujeitos/destinatários privilegiados do anúncio do Reino modificam de forma estrutural a Igreja.

 
4.1 O SER DOS POBRES COMO NOTA DA IGREJA DE JESUS

 
No caminho elementar que constitui a Igreja dos pobres está a sua fidelidade a Jesus Cristo, principalmente pela característica essencial em ser dos pobres. Há quem pense que a dimensão dos pobres na Igreja refere-se a um vertente social contida nela, como se Igreja tivesse somente uma função assistencialista com referência aos menos favorecidos.

 
Uma Igreja dos pobres não é aquela que se coloca fora da realidade de conflito que a cerca, propondo-se somente a oferecer seu auxílio e nem aquela que o faz somente por um conceito ético. Ser dos pobres é algo constitutivo do próprio ser Igreja, é algo que perpassa os conceitos puramente sociológicos ou uma dimensão particularizante de classe social. Afirmar teologicamente sobre a Igreja dos pobres, é dizer que o Espírito de Deus que animou Jesus a anunciar a Boa Nova (Lc, 4, 18-19) é o mesmo que deve orientar a vivência eclesial de sua herdeira, traz portanto, uma questão fundamental de ortopráxis eclesial e de ortodoxia teológica (AQUINO, 2005, p.210), isto é, de uma forma de ser cristão e de seguir Jesus.
No centro da vida da Igreja está a realização do Reino de Deus. Essa centralidade é circunstância sine qua non para a vivência de um cristianismo que tem como princípio a vida e morte de Jesus de Nazaré. Em Mateus 5, quando Jesus proclama as Bem-Aventuranças e inverte o conceito de "felizes”, assumi-se de fato que todos os desgraçados e infelizes: os pobres, aqueles que sofrem, que choram, que são perseguidos, na verdade, que para imensa maioria "não contam”, a eles é reservado o Reino de Deus.
Se como vimos, o Reino está, sobretudo para os pobres e no centro da vida da Igreja se encontra a sua implantação, portanto, uma Igreja que não está constitutivamente para os pobres significa que não está para o Reino, pode-se afirmar que nem Igreja se configura! A felicidade dos bem aventurados não está na pobreza, na fome, na dor ou na perseguição; está na presença de Deus junto deles (VIGIL, p 62). Uma Igreja que se proclama como "Sacramento de Cristo” (LG.1, 1964), isto é, como sinal visível de sua presença entre nós, não pode negligenciar o fato de que a vida de Jesus de Nazaré foi sempre ao lodo dos últimos, assim como também sua morte (Mt 15,27; Lc 22,37). A Igreja que é herdeira desta realidade histórica (SOBRINO, 1982, p. 107) não pode esquecer esse ensinamento eclesiogênico[7].
Assumir a realidade de miséria, dor, sofrimento, martírios é afirmar que todo princípio de organização da Igreja se faz a partir dos pobres, não como "parte” dentro dela, mas como autêntico lugar teológico de compreensão da práxis cristã. Não queremos afirmar aqui que o ser "dos pobres” esgota a identidade da Igreja, mas que é fundamentalmente um dado de fé. A Igreja de Jesus Cristo é a Igreja dos pobres.

 
4.2 O SER DOS POBRES COMO PRINCÍPIO ESTRUTURADOR DA IGREJA EM SUA TOTALIDADE.

 
Na medida em que a Igreja percebe, na fidelidade a pessoa de Jesus de Nazaré, os pobres como ponto de partida e de convergência da sua ação pastoral ela se vê impelida a dar demonstrações claras desta vivência. Destarte, os pobres configuram uma forma própria do ser Igreja na medida em que encontram na sua vida comunitária a ligação com Deus.

 
Percebemos, pois, que a configuração feita pelos pobres na Igreja que junto deles se estrutura torna-se perceptível na maneira em que: celebram os sacramentos, assumindo o sinal como festa da vida, na forma como fazem a leitura da Palavra de Deus, reconhecendo nela a sua realidade de dor e o rosto de um Deus que caminha junto e liberta e nos cânticos que nos entoam mais diversos momentos celebrativos, que revigora a força de estar lutando por um novo céu e uma nova terra (Cf. Ap 21,1).

 
A fé faz com que os pobres se neguem a entregar-se ao acaso. Converter as estruturas neste conceito de rocha viva (1Pd 2,5a) é saborear a utopia do Reino que "lhes foi preparado deste a criação do mundo” (Mt 25,32).

 
CONCLUSÃO

 
Nossa intenção ao escrever o presente artigo foi demonstrar, mesmo que não profundamente, de que forma a Igreja dos pobres é fundamento para a teologia da libertação. Levamos em conta a problemática que decorre da particularização existente neste modelo de Igreja para explicitar que é um requisito estritamente evangélico. Percorremos do Vaticano II à sua influência na Igreja da América Latina, que desenvolveu suas reflexões próprias, para enfim, demonstrar que essa opção pelos pobres não recai em um erro de ortodoxia, pelo contrário demonstra a fidelidade mais singular de uma Igreja que caminha nos passos de Jesus de Nazaré.
Neste artigo realizamos um pequeno ensaio de reflexão com o sentimento de percorrer os caminhos já trilhados por muitos. Acreditamos que a Tradição de uma Igreja sempre viva não se coloca jamais longe dos pobres desta terra. Demonstramos, aqui, a nossa convicção na Igreja Una, Católica, Apostólica e dos Pobres... É com e por eles que somos a Igreja de Cristo, do Ressuscitado!

 
[...] Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama [...]. (D. Helder Câmara, 1982).

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
ALBERIGO, Guiseppe. História dos Concílios Ecumênicos. São Paulo: Paulus, 1995.
AQUINO, J. "Igreja dos pobres: sacramento do povo universal de Deus”, in TOMITA, Luiza. – VIGIL, José. M. [orgs.]. Pluralismo e Libertação. Por uma Teologia Latino-Americana Pluralista a partir da Fé Cristã. São Paulo: Loyola, 2005, p. 193-214.
BEOZZO, José Oscar. A Igreja do Brasil: de João XXIII a João Paulo II, de Medellín a Santo Domingo. Petrópolis: Vozes, 1993.
_______.Nota sobre os participantes da Celebração do Pacto das Catacumbas Disponível em www.ccpg.puc-rio.br/nucleodememoria/.../beozzocatacumbas.pdf. Acesso em 10 de jun. 2011.
Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.
BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja.São Paulo: Record, 2008.
________.Teologia do Cativeiro e da Libertação. Petrópolis: Vozes, 1980.
CAMARA, Helder. "Louvação a Mariama”, in NASCIMENTO, Milton. Missa dos Quilombos, Universal Music, 1982.
CELAM.Conclusões de Medellín. São Paulo: Paulinas, 1979.
Constituição Dogmática Lumen Gentium. São Paulo: Paulinas, 2006.
Documentos de João XXIII: (1958-1963). São Paulo: Paulus, 1998.
GUTIERREZ, Gustavo. A verdade vos libertará: confrontos. São Paulo: Loyola, 2000.
_______. Teología desde el reverso de la historia. Lima: Centro de Estudios y Publicaciones, 1977.

 
JOÃO XXIII. Humanae Salutis. Roma, 1961.
KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II, Vol. V, Quarta sessão. Vozes, 1966.
OLIVEROS, Roberto. "Historia de la teología de la liberación”, in ELLACURIA, Ignacio – SOBRINO, Jon. Conceptos fundamentales de la Teología de la Liberación. Tomo I. Madrid: UCA, 1990.
PAULO VI. Evangelli Nuntiandi. Roma, 1975.
SANTOS, Carlo. C. Teologia da Libertação: obra de Deus ou do diabo? Disponível em http://www.slideshare.net/carlosnaweb/teologia-da-libertao-obra-de-deus-ou-do-diabo-5437697. Acesso em 18 de jun. 2011.
SOBRINO, J. Ressurreição da Verdadeira Igreja. São Paulo: Loyola, 1982.
VIGIL, José Maria [org.]. Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007.

 
Notas:

 
(1) Pode-se constatar na obra de: KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II,Vol V, Quarta sessão. Vozes, 1966.

(2) Para mais informações ver em: BEOZZO, José Oscar. Nota sobre os participantes da Celebração do Pacto das Catacumbas.

(3) Tem-se como marco principal da teologia da libertação, o livro de: Gustavo Gutierrez.Teologia da Libertação.Petrópolis, Vozes, trad. Jorge Soares, 1976.

(4) Pode-se aprofundar nesse sentido no livro de: BOFF, Leonardo. Teologia do Cativeiro e da Libertação. São Paulo: Vozes, 1980.

(5) Surgem sindicatos, movimentos populares, associação de moradores, de mães, etc.

(6) Podemos lembrar de Bartolomeu de las Casas ( o protetor dos índios) e dos mártires da América Latina que conscientes da necessidade de "fazer acontecer” o Reino, doaram suas vidas através dos mais diversos modos.

(7) Para maior aprofundamento vide a reflexão feita em: BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Record, 2008.



[Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco de Aquino Junior].


João Leondenes Facundo de Souza Junior


Fonte: http://www.adital.com.br/

TdL em Mutirão 34

GÊNESE, CRISE E DESAFIOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO


I. A gênese


A Teologia da Libertação (TdL) nasce na América Latina e Caribe num contexto histórico bem definido. Três ordens de fatores marcam e explicam sua gênese e seu desenvolvimento. Primeiramente, numa perspectiva sócio-econômica e política, grande parte dos países latino-americanos e caribenhos, sofria sob o peso da ditadura militar. Acrescida da dependência econômica em relação ao Primeiro Mundo, os regimes de exceção contribuem poderosamente para agravar as desigualdades sociais que se verificam no interior dos países periféricos do Terceiro Mundo, bem com entre estes e os países centrais. Nesse estado de coisas, opressão política e dívidas sociais crescentes constituíam duas faces da mesma moeda. As nações subdesenvolvidas, embora formalmente independentes, na verdade viviam sob a égide de uma nova colonização, ou melhor, jamais haviam saído dela.
Em segundo lugar, desde uma perspectiva científica, o instrumental de análise social marxista jogava luz sobre essa realidade de domínio político e econômico. Na medida em que disseca a partir de suas entranhas o funcionamento da acumulação capitalista, a teoria marxista põe a nu as contradições do liberalismo econômico. Basta uma olhada rápida às obras de Gustavo Gutierrez, Juan Luis Segundo, Clodovis e Leonardo Boff, Jon Sobrino, Hugo Asmann, Ellacuría – entre tantos outros – para dar-se conta de que, em termos de análise social, implícita ou explicitamente, elas se guiam pela matriz teórica do marxismo. Convém não esquecer, porém, que os autores da TdL recorrem a essa matriz teórica muito mais para entender a gênese da opressão social, do que na busca de um projeto social alternativo. Neste caso, a orientação e a luz partem antes da Palavra de Deus.
A terceira ordem de fatores que ajuda a entender o surgimento da TdL está vinculada ao campo eclesial. Cinco aspectos desta inflexão eclesial devem ser destacados. Primeiro, a experiência da Ação Social Católica nos anos 50 e 60, especialmente entre a classe operária francesa. A difusão do método VER-JULGAR-AGIR mergulha aí suas raízes, ajudando a entender os problemas sociais através de uma pedagogia crítica, por um lado, e de uma prática transformadora, por outro.
Depois, temos a realização do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), como tentativa bem sucedida de a Igreja entrar em diálogo aberto com o mundo moderno. Tratava-se, em poucas palavras, de afinar o compasso com as descobertas da ciência e com o progresso tecnológico. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo de Hoje, traça um retrato da realidade, em suas “mudanças rápidas e profundas”, que ainda hoje mantém grande atualidade.
O terceiro aspecto refere-se à II Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe, realizada na cidade de Medellín, Colômbia, no ano de 1968. Estamos em plena vigência das ditaduras militares. O tema – La Iglesia en la actual transformación de la América Latina, a la luz del Concilio Vaticano II – retrata um contexto de grande efervescência social e política. Os bispos cunham a expressão “violência institucionalizada” para sublinhar que “um surdo clamor brota de milhões de homens, como injustiça que clama aos céus”. Falam também da “vigência de estruturas inadequadas e injustas” que pesam duramente sobre os povos do continente.
O aspecto de número quatro representa a prática libertadora das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em vários países da América Latina e do Caribe. Inspiradas no método Ação Católica, por uma parte, e por outra, estimuladas pelas conclusões do Vaticano II e do Documento de Medellín, as comunidades cristãs passam a uma militância ativa pela transformação das estruturas sociais injustas. A leitura da realidade à luz da Palavra de Deus e a busca de soluções concretas para os problemas reais definem sua prática religiosa frente à dominação política e à pobreza econômica. Esse “novo jeito de ser igreja” realiza entre a fé e o compromisso social um casamento indissociável e rico em conseqüências. Vale sublinhar que essa “opção preferencial pelos pobres” tem na hierarquia amplo respaldo.
E chegamos assim ao quinto e último aspecto a ser lembrado: um discurso social fortemente combativo, acompanhado de uma prática conseqüente, seja por parte de algumas conferências episcopais latino-americanas e caribenhas, seja por parte de alguns bispos isolados. No caso das conferências, o destaque vai para o Brasil, onde o enfrentamento à ditadura militar produziu documentos de uma veemência profética surpreendente. Quanto aos pastores mais engajados, vale apontar os nomes de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Oscar Romero – para só citar alguns.
As três ordens de fatores e os cinco aspectos eclesiais, combinados entre si, estão na raiz da Teologia da Libertação. Esta nasce e se desenvolve como uma reflexão crítica a partir da práxis libertadora dos cristãos. Ou seja, num primeiro momento desenrola-se em inúmeros grupos, movimentos e pastorais sociais a luta pela libertação; só depois, num segundo momento, é que se desenvolve a reflexão teórica. Esta, no decorrer do tempo torna-se simultaneamente causa e efeito de novas lutas e novas sínteses reflexivas. Instala-se o que Juan Luis Segundo irá chamar de círculo hermenêutico: a consciência sobre a realidade opressiva leva a uma prática libertadora, a qual alimenta uma reflexão teórica que, por sua vez, retroage sobre a realidade, renovando e aprofundando a ação social e política.
Esse esquema de dupla face – práxis transformadora e reflexão teórica – ganhou impulso sob as botas dos militares. Não é à toa que a perseguição política e o martírio acompanharam de perto essa nova forma de viver a fé cristã. Militantes de base, agentes pastorais e teólogos, às dezenas e centenas, sofreram no corpo e na alma o peso e o impacto da ação repressiva.

 
II. A crise

 
No final dos anos 70 e início dos 80, os regimes de exceção começam a dar lugar a um processo democrático lento e gradual. Este terá uma trajetória desigual e conturbada, de acordo com o contexto específico de cada país. À medida que esse processo se afirma, as CEBs e a TdL tendem a ofuscarem sua perspectiva crítica e a diminuir sua combatividade social e política. Tanto fora como dentro da Igreja, ambas perdem força de incidência. No caso particular do Brasil, há um agravante. Se, por um lado, é verdade que CEBs e TdL constituem um dos igarapés que engrossaram o rio caudaloso do Partido dos Trabalhadores e da eleição do governo Lula, por outro também é certo que seus integrantes sofrem grande perplexidade diante da aliança desse governo com setores historicamente retrógrados da sociedade brasileira.
Essa crise, aliás, ultrapassa de muito os limites da Igreja. Ela irá marcar de uma forma generalizada todas as organizações sociais de esquerda, a partir da segunda metade dos anos 80, retornando com mais ênfase diante da timidez do governo Lula em enfrentar as mudanças estruturais. Mudanças que, não custa lembrar, constituíam as principais bandeiras de tais organizações.
É neste contexto de crise que vêem à tona algumas lacunas da prática das CEBs e da reflexão teórica da TdL que, a bem da verdade, já se encontravam em germe desde a sua origem. Latentes na gênese, aparecem agora à plena luz do dia. Entre elas, gostaria de apontar as cinco principais: matriz teórica insuficiente, conceito redutivo de liberdade, dificuldade de incorporar o discurso do meio ambiente, problemas de linguagem, temas transversais. Vejamos uma por uma.
1. Como já vimos anteriormente, a análise da realidade com que operam os representantes das CEBs e da TdL tem como base a matriz teórica do instrumental marxista. Esta matriz, como é notório, prima pela análise social, econômica e política da sociedade. Aliás, desde os primórdios da economia capitalista, tanto a direita quanto a esquerda irão desenvolver uma teoria marcadamente economicista, tendo como pano de fundo a racionalidade aplicada do iluminismo. Tanto Adam Schmidt e Ricardo, por uma parte, como Marx e Engels, por outra, trabalham com os dados da produção, comercialização e consumo.
Importada para a América Latina, essa matriz se revela insuficiente e às vezes até inadequada para explicar o “caldeirão” cultural em que se transformou o continente latino-americano e caribenho. Ela não dá conta de captar toda a riqueza e a mestiçagem profunda das três raças que lhe deram origem. Tende a desconhecer, entre outras coisas, a inegável contribuição negra e indígena para a formação cultural de nossos povos.
Essa lacuna necessita ser preenchida com novos dados da história do continente. Não que se deva jogar pela janela o instrumental de análise marxista. Ele nos ajudou e continua nos ajudando a compreender as estruturas sociais de concentração, pobreza e exclusão social. Mas, a essa matriz teórica, temos de incorporar novas informações, sobretudo de caráter antropológico, religioso, psicológico, etc. A dimensão econômica, política e social não conseguem explicar tudo. Há outras dimensões do ser humano que devem ser contempladas. Aliás, a experiência prática ensina que não basta resolver os problemas de ordem social para criar uma sociedade alternativa. Há questões de outra natureza e de maior profundidade que devem ser levadas em conta, se quisermos entender a alma dos povos latino-americanos.
2. O conceito de liberdade que se encontra na visão das CEBs e da TdL, como aliás de outros setores da esquerda latino-americana, muitas vezes se reduz â noção de libertação. Isto se explica, em parte, pelo fato de terem se desenvolvido debaixo da repressão militar. Era urgente liberar-se das correntes, da pobreza, do machismo, etc. Não é sem razão que se buscava no Livro do Êxodo um cimento religioso e ideológico para o combate à opressão. Ocorre que a noção de libertação constitui apenas um lado do conceito mais amplo de liberdade, a liberdade de. Este tem que ser complementado com o outro lado, isto é, a liberdade para. E é justamente aqui que as coisas se complicam.
Voltando ao caso do povo hebreu na experiência do Egito, quando se tratou de dar um conteúdo programático à liberdade conquistada, já na travessia do deserto, bateu-lhes a saudade do Egito. Ali, embora submetidos ao Faraó, tinham “as panelas cheias e não passavam fome”. Ou seja, preferem a escravidão à liberdade, desde que não falte o que comer. A liberdade, quando exige trabalho e responsabilidade, converte-se num fardo pesado. No caso dos romanos, como bem sabemos, a escravidão era compensada com “pão e circo”.
Aqui há lições a serem aprendidas. A noção restritiva de liberdade, herança da época dos militares, torna muitas vezes imaturas algumas práticas de esquerda. Somos peritos em atirar pedras sobre o telhado de vidro das oligarquias históricas, e vemos fazê-lo, sem dúvida. Mas quando se trata de elaborar um plano de ação, um programa de governo ou um projeto de sociedade, as idéias se embaralham. O vigor teórico, tão vigoroso na crítica, perde força e alcance quando se trata de construir uma via alternativa.
3. O discurso ecológico, felizmente, vem ganhando espaço nos movimentos sociais e organizações de esquerda. Mas em muitos casos, ainda aparece como um tema “transversal”, o que, não raro, é sinônimo de secundário. É preciso reconhecer que houve avanços em relação a algumas décadas atrás, quando a preocupação com o meio ambiente era considerada “coisa de quem não tem o que fazer” ou dos “ambientalistas europeus”. Mas há muito caminho a ser feito.
Hoje cresce a consciência de que ou protegemos as diversas formas de vida do planeta, ou perecemos junto com ele. Nas análises do modelo neoliberal, cada vez mais entram a fazer parte itens como a devastação do meio ambiente, o uso indiscriminado dos recursos naturais, o aquecimento global, a contaminação das águas e do ar, o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável, e outros temas correlatos. O modelo econômico não é apenas concentrador e excludente, é também predatório em relação à biodiversidade. Diante dos alertas cada vez mais alarmantes dos cientistas, dos movimentos ambientalistas e das organizações não governamentais, o prefixo “bio-vida” passa a fazer parte de qualquer estudo sobre a realidade.

Cabe aqui um olhar ao Livro do Gênesis, em que se narra que Deus criou a terra e todas as coisas como “nossa casa” e “viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Mais tarde, Deus estabelece uma aliança com seu povo, simbolizada pelo arco-íris. Vale sublinhar que a aliança não leva em conta apenas os homens e mulheres, mas, como diz textualmente a narração, “com todos os seres vivos” e “com todas as gerações futuras”. E o texto insiste: “com tudo o que vive sobre a face da terra”. Ou seja, o Deus Criador preocupa-se com a vida em todas as suas formas, por um lado, e, por outro, com a preservação da vida para as gerações vindouras (Gn 9,12-17).
4. Na prática das CEBs e das Pastorais Sociais, como também no estudo da TdL, a linguagem tornou-se um desafio cada vez mais premente. Entre o universo popular e o universo do agente intermediário, não raro se abre um abismo quase intransponível. Enquanto o primeiro se revela rico em imagens, “causos”, histórias, mímica e uma rica coreografia de gestos, o segundo prima pela lógica acadêmica da racionalidade científica. Um fala predominantemente com o corpo e com o coração, outro com a cabeça. Não que isso seja problemático em princípio. Ambas as formas de linguagem e de comunicação são legítimas e necessárias. O problema é que muitas vezes uma não entende nem é entendida pela outra. Caminham em linhas paralelas. É como se um lado estivesse sintonizado em AM e outro em FM.
O desafio é estabelecer pontes entre os dois universos. Isso requer capacidade de escuta e compreensão, particularmente por parte dos agentes de pastoral e dos estudiosos da teologia. Requer uma aguda penetração no mundo cultural e na alma da população, reconhecimento e valorização de seus valores, coisa de que nem sempre somos capazes. É necessário dar-se conta que os ouvidos da universidade e os ouvidos das ruas são distintos e exigem formas apropriadas de comunicação. Enquanto na rua funciona mais o canto, a música, a dança e a poesia, na sala de aula é a análise racional que prevalece. Confundir estes dois ambientes é bloquear a comunicação.
Também não resolve simplesmente passar a palavra ou o microfone ao povo. Isso pode gerar situações altamente constrangedoras para ambas as partes. Se é verdade que a palavra não deve ser monopólio dos entendidos, também é verdade que existem outras formas de se comunicar. A linguagem verbalizada é apenas uma parte, e bem reduzida, do processo integral da linguagem. O que é necessário é abris espaços para novas formas de linguagem, nas quais os representantes do povo se sintam “mais à vontade e mais em casa”.
5. Já vimos como o meio ambiente é tratado às vezes como “tema transversal”. Também vimos que isso é uma forma de reduzi-lo a um plano secundário. O mesmo se constata com outros temas, mais relegados ainda à condição ambígua de “transversais”. Sublinhemos apenas quatro: gênero, raça, opção sexual e democracia na Igreja. Todos eles, em geral, comparecem em nossas preocupações iniciais, reaparecem nas propostas finais de nossas assembléias e encontros, mas dificilmente chegam a figurar no primeiro plano das pautas aprovadas. Numa palavra, apenas tangenciam os temas de fundo.
Daí a dificuldade de compaginar um discurso libertador, na arena política, com uma prática autoritária, no âmbito individual ou familiar. Daí também a persistência em nossa práxis de alguns vírus, como autoritarismo, centralismo, corporativismo, personalismo, e outros “ismos” igualmente nocivos. Daí, ainda, a falta de companheirismo entre homens e mulheres, no interior de nossas atividades, como também de verdadeira democratização das decisões. Daí, enfim, o grande estranhamento que manifestamos, implícita ou explicitamente, diante de algumas minorias marcadas por diferentes opções sexuais.
E nem precisaria acrescentar a persistência de um racismo dissimulado ou declarado, mesmo entre aqueles que propugnam por uma sociedade nova. Apesar de todo nosso conhecimento das raízes históricas latino-americanas e da escravidão negra, ou justamente por causa disso, muitas vezes nossa prática consciente ou inconsciente aviva o estigma da marginalização na pele do povo negro. Deliberadamente ou não, fazemos sangrar feridas que em vão tentam cicatrizar.
Quanto ao tema da democracia no interior da Igreja, basta lembrar a presença desproporcionada da mulher na base e no topo da pirâmide. Enquanto nas comunidades eclesiais e grupos de base elas representam a maioria absoluta, às vezes carregando sobre os ombros todo peso da responsabilidade, à medida que se sobe nas instâncias decisórias, elas vão se tornando cada vez mais raras, até desaparecer por completo no corpo da hierarquia.



III. Os desafios



A análise da gênese e da crise da Teologia da Libertação, ao fazer emergir as lacunas que estavam ocultas, trazem novos desafios. Diante deles, há posturas diversas, algumas claramente contrastantes. Enquanto uns simplesmente abandonam a TdL e outros se radicalizam ainda mais em seu estudo, uma boa parte procura evitar esses dois extremos, tratando de redefinir seus conteúdos e métodos. Creio que neste caso a “terceira via” seja a mais indicada.
De fato, abandonar a TdL hoje é desconhecer a necessidade de prosseguir no combate à exploração exacerbada do ser humano, da biodiversidade e da natureza em seu conjunto. As vítimas do neoliberalismo e da economia globalizada, hoje, não são menos numerosas nem menos sacrificadas do que, ontem, as vítimas dos regimes de exceção. Qualquer tipo de ditadura, seja militar ou do mercado, deve ser combatida por quem se diz cristão. Não podemos esquecer que antes da “teologia” vem a “libertação”. Importa mais esta do que aquela. Mas tampouco podemos esquecer que uma reflexão teórica e sistemática sobre a práxis libertadora, em última instância, ilumina, orienta e fortalece a própria práxis.
Por outro lado, persistir num radicalismo gratuito é desconhecer que o contexto histórico dos regimes democráticos, ainda que se trate de democracia formais e cheias de contradições, é diferente dos regimes de exceção. Novas perguntas emergem e exigem respostas igualmente novas. Embora o conteúdo de fundo e o método de interpretação hermenêutica sigam inalteráveis, mudam muitos conteúdos de caráter circunstancial e muda a pedagogia da organização social. Os debates da TdL, sob pena de se tornarem anacrônicos, devem acompanhar as mudanças do tempo.
Mas um dos maiores desafios que hoje se coloca à TdL é, sem dúvida, o pluralismo cultural e religioso, como uma das principais características da chamada pós-modernidade. Da mesma forma com que foram banidos na aurora do mundo moderno, os deuses retornam com a força de águas represadas. No contexto de uma mentalidade cada vez mais urbanizada, não só do ponto de vista geográfico, mas em termos culturais, os deuses proliferam por todos os cantos. Estão nas ruas, nos centros comerciais, nos meios de comunicação, na mídia... É verdade que muitos deles se revelam divindades estranhas, pairando nas nuvens, alheias e indiferentes à dores e esperanças humanas. Outros primam pelo individualismo, pelo intimismo privativo ou pela prática da magia. Mas nem por isso merecem menos atenção.
Diante de tal profusão de deuses, qual o rosto do Deus verdadeiro? Como o apóstolo Paulo em Atenas, Grécia, somos novamente confrontados nos areópagos de hoje com o Deus desconhecido. Ou seja, o Deus verdadeiro é sempre desconhecido. Os deuses demasiadamente conhecidos são deuses de fácil manipulação. Aliás, deuses no plural faz lembrar idolatria. O verdadeiro Deus revela e oculta sua face, interpelando permanentemente nossas práticas e crenças, e exigindo que o busquemos junto ao empobrecido.
No testemunho radical da cruz, Jesus descobre o rosto de Deus ao descer ao “inferno do sofrimento humano”, por um lado, e, por outro, ao partilhar das alegrias e sonhos da população mais pobre, indefesa e excluída. Mais do que nunca, a TdL e as CEBs precisam orientar os cristãos deste continente crucificado a renovar a “opção preferencial pelos pobres”. Aliás, o Documento Final da V Conferencia dos Bispos da América Latina e do Caribe é enfático a esse respeito. Mantemos suas palavras no original, em espanhol: “Nos comprometemos a trabajar para que nuestra Iglesia Latinoamericana y Caribeña siga siendo, con mayor ahínco, compañera de camino de nuestros hermanos más pobres, incluso hasta el martirio. Hoy queremos ratificar y potenciar la opción del amor preferencial por los pobres hecha en las Conferencias anteriores. Que sea preferencial implica que debe atravesar todas nuestras estructuras y prioridades pastorales. La Iglesia latinoamericana está llamada a ser sacramento de amor, solidaridad y justicia entre nuestros pueblos” (nº 410).

Pe. Alfredo J. Gonçalves


Fonte: http://www.adital.com.br/

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

TdL em Mutirão 33

A IGREJA COMO COMUNHÃO.

O objetivo deste artigo é apresentar e entender a Igreja como comunhão.

A expressão Igreja (do grego εκκλησία [ekklesia] e do latim ecclesia) nasce da palavra hebraica qahal (ou qehal) conforme a tradução grega do Primeiro Testamento, a Septuaginta. Ekklesia significa, o ato da reunião e a própria comunidade reunida, a comunidade toda do povo de Deus. No Segundo Testamento, ekklesia significa o novo povo, o verdadeiro Israel no meio de nós enquanto comunidade reunida, portanto, ela é acontecimento e instituição. Ela é empregada três vezes em Mateus, treze vezes no Apocalipse, uma vez na epístola de Tiago; sem dúvida é frequentemente encontrada nos Atos dos Apóstolos (que acrescentam muitas vezes a expressão tou Theou – Deus é quem conclama e reúne toda a comunidade e nela se faz presente) e nas epístolas paulinas que também utiliza-a para designar a comunidade local e a Igreja universal.

A Constituição Dogmática Lumen Gentium sobre a Igreja do Concílio Ecumênico Vaticano II diz: Cristo, Mediador único, constituiu e sustenta indefectivelmente sobre a terra, como organismo visível, a sua Igreja santa, comunidade de fé, de esperança e de caridade, e por meio dela comunica a todos a verdade e a graça. Contudo, sociedade dotada de órgãos hierárquicos e corpo místico de Cristo, assembléia visível e comunidade espiritual, Igreja terrestre e Igreja já na posse dos bens celestes, não devem considerar-se como duas realidades, mas constituem uma realidade única e complexa, em que se fundem dois elementos, o humano e o divino. Não é, por isso, criar uma analogia inconsistente comparar a Igreja ao mistério do Verbo encarnado. Pois, assim como a natureza assumida pelo Verbo divino lhe serve de órgão vivo de salvação, a ele indissoluvelmente unido, de modo semelhante a estrutura social da Igreja serve ao Espírito de Cristo, que a vivifica, para fazer progredir o seu corpo místico (LG,1997, p.110).

O conceito de comunhão (koinonia), manifestado nos textos do Vaticano II, mostram a profundidade do Mistério da Igreja como chave de leitura para a eclesiologia católica atual.

O mistério da Igreja deve suscitar uma reflexão teológica a partir do entendimento da comunhão, onde se admite novas e profundas pesquisas. Nesse sentido Pié-Ninot irá dizer: Pouco a pouco se evidenciou que a visão eclesiológica do Vaticano II comporta um conceito renovado de communio, embora a Igreja jamais tenha sido definida desse modo. Esse conceito tem um significado básico de comunhão com Deus, da qual se participa por meio da palavra e dos sacramentos. Esse tipo de comunhão é que leva à comunhão dos cristãos entre si e se realiza concretamente na communio das Igrejas locais fundadas mediante a eucaristia. Chega-se assim ao termo técnico de communio, conceito e realidade fundamental da Igreja antiga. (PIÉ-NINOT, 1998, p.30).

A Congregação para a Doutrina da Fé assim se expressa: O conceito de comunhão está "no coração da autoconsciência da Igreja", enquanto Mistério da união pessoal de cada homem com a Trindade divina e com os outros homens, iniciada na fé, e orientada para a plenitude escatológica na Igreja celeste, embora sendo já desde o início uma realidade na Igreja sobre a terra. (...) Para que o conceito de comunhão, que não é unívoco, possa servir como chave interpretativa da eclesiologia, deve ser entendido no contexto dos ensinamentos bíblicos e da tradição patrística, nos quais a comunhão implica sempre uma dupla dimensão: vertical (comunhão com Deus) e horizontal (comunhão entre os homens). É essencial à visão cristã da comunhão reconhecê-la, antes do mais, como dom de Deus, como fruto da iniciativa divina cumprida no mistério pascal (CDF, 2011).

É preciso compreender e experimentar uma comunhão entre todos os fiéis para que de fato participem da natureza divina, do Pai, do Filho e do Espírito Santo e reafirmar que somos a Igreja de Cristo mediante a fé e o batismo: una, santa, católica e apostólica.


Emerson Sbardelotti

Estudante do Bacharelado em Teologia pelo Instituto de Filosofia e Teologia da Arquidiocese de Vitória do Espírito Santo (IFTAV); Licenciado em História pelo Centro Universitário São Camilo, Vitória – ES; Bacharel em Turismo pela Faculdade de Turismo de Guarapari – ES; Autor de O Mistério e o Sopro – roteiros para acampamentos juvenis e reuniões de grupos de jovens. Brasília: CPP (www.cpp.com.br), 2005; Autor de Utopia Poética. São Leopoldo: CEBI (www.cebi.org.br), 2007; Agente de Pastoral Leigo da Paróquia Nossa Senhora da Conceição Aparecida, Cobilândia, Vila Velha – ES; Assessor para as áreas de Mística, Espiritualidade, Juventude, Bíblia e Liturgia. Correio eletrônico: prof.poeta.emerson@gmail.com.


DOCUMENTOS DO Concílio Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997.

PIÉ-NINOT, Salvador. Introdução à Eclesiologia. 5ª.ed. São Paulo: Loyola, 1998.


CONGREGAÇÃO PARA a Doutrina da Fé. Carta aos Bispos da Igreja Católica sobre alguns aspectos da Igreja entendida como comunhão. Disponível em < http://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/documents/rc_con_cfaith_doc_28051992_communionis-notio_po.html>. Acesso em 15 out. 2011.









segunda-feira, 10 de outubro de 2011

TdL em Mutirão 32

NÃO DEIXA CAIR A PROFECIA!


Mensagem de Dom Pedro Casaldáliga à Assembléia Geral do Cimi, enviada por vídeo e apresentada na abertura, na terça-feira, dia 4 de outubro.




"Reunida em assembleia geral, em tempos raríssimos, como dizia Santa Teresa, em tempos belos, que devem ser, simultaneamente, tempos de muito compromisso, de muita esperança.
Eu estava lendo, estes dias, o livro de Marcelo Barros, sobre Dom Helder Camara - Profeta para os nossos dias. Nos últimos dias de sua vida, Dom Helder falou para Marcelo: não deixa cair a profecia. Nós família do Cimi, os presentes na Assembleia, os espalhados por aí, devemos abrir os olhos, abrir o coração, e assumir a hora. Estamos convencidos de que não serão os governos de baixa democracia que resolverão os desafios maiores da maioria do nosso povo. Sabemos por experiência, que a causa indígena é uma causa que atrapalha. Os povos indígenas são inimigos do sistema. E das oligarquias sucessivas e os impérios sucessivos que agora são um macro-império volátil das grandes empresas, dos grandes bancos, que não podem falhar, porque falha a humanidade, parece.
Sentimos que mesmo aproveitando as brechas que os governos atuais nos dão, a nossa luta é maior. Devemos insistir no trabalho de conscientização no meio dos povos indígenas.
[É preciso] recordar também que é um momento de tentação, de cooptação, de divisão. Recordar que as autarquias do Incra, da Funai, do IBAMA, são apenas instituições marginais dentro do sistema, que existem para dar aparência de uma dedicação, de um cuidado.
De fato, a política indígena não é a favor dos próprios indígenas. A política agrária não é a favor do povo camponês. Sejamos conscientes. Sejamos críticos e autocríticos.
E mantenhamos a esperança. Pode falhar tudo. Menos a esperança. Estamos na tentação. Vontade às vezes dá de largar tudo. Quanto mais difícil o tempo, mais forte deve ser a esperança.
Na Romaria dos Mártires, celebrado agora em julho, recordávamos que fazer a memória dos mártires, é assumir as causas pelas quais eles deram a vida. É fazer memória de todos esses anos de Cimi, pelos quais tantos irmãos e irmãs, agentes de pastoral, agentes indigenistas, e os próprios índios, sobretudo, vêm lutando; vêm arriscando a vida; vêm dando a vida também.
Recordamos que uma palavra testamentária de Jesus diz; "Façam isso em memória de mim." Dêem a vida em memória de mim. Dêem a vida aos pobres, aos pequenos, aos povos indígenas.

Um grande abraço, e a paz subversiva do Evangelho".



Dom Pedro Casaldáliga, outubro 2011
Bispo Emérito da Prelazia de São Félix do Araguaia



Fonte: Cimi/Adital

TdL em Mutirão 31

UM CINQUENTENÁRIO PERIGOSO


Para qualquer instituição, todo projeto de reforma soa como ameaça. Até na vida humana, as fases de mudança são épocas de crise e dor. Nestes dias, a Igreja Católica inicia o 50º aniversário da abertura do Concílio Vaticano II, em Roma, no dia 11 de outubro de 1962. Desta semana até o próximo ano, no mundo inteiro, diversos eventos recordarão aquele evento que deu início a uma renovação da Igreja e a pôs em diálogo respeitoso e construtivo com o mundo contemporâneo. Se a Igreja quer ser fiel ao que, hoje, o Espírito de Deus diz às comunidades e ao mundo, deve prosseguir, com coragem e determinação, o diálogo com a humanidade e o trabalho exigente da sua renovação interna para melhor testemunhar o projeto divino neste mundo.

Há 50 anos, na Igreja Católica, o apego a tradições dos séculos medievais e modernos, como se existissem desde os tempos evangélicos, era ainda mais forte do que é hoje. Por isso, a maioria dos católicos estranhou quando, na noite de 25 de janeiro de 1959, o papa João XXIII participou de um culto pela unidade das Igrejas cristãs e declarou ao mundo a decisão de convocar um concílio geral que reunisse todos os bispos do mundo para renovar a Igreja Católica em vista de melhor se adequar ao caminho para a unidade com outras Igrejas cristãs.

João XXIII fazia uma distinção entre a Tradição (com t maiúsculo), memória da fé que vem de Jesus e as tradições (com t minúsculo), costumes que, durante o decorrer dos séculos, foram se juntando como elementos culturais na forma da Igreja ser. Para a renovação, o papa propunha dois critérios: voltar às fontes da fé e, ao mesmo tempo, atualizar o modo de ser e a linguagem da Igreja.

O Concílio Vaticano II teve quatro sessões e se encerrou em dezembro de 1965. Ofereceu à Igreja e ao mundo 16 documentos que foram referência para a renovação eclesial e para o diálogo com o mundo. Desde esta época, o mundo viveu não apenas uma época de fortes mudanças, mas uma verdadeira mudança de época. Mais de 80% das invenções atuais que parecem normais nas casas e na vida das pessoas de hoje não existiam no começo dos anos 60. Em todo o mundo as sociedades de cultura agrária se urbanizaram. Mesmo quem vive no campo, convive com carro, assiste televisão e, de alguma forma, está dentro de uma cultura urbana. Nesta sociedade, o conhecimento experimental é fundamental. A sociedade se organiza através de uma permanente transformação. Um programa, hoje, atual, dentro de seis meses estará desatualizado. Em todas as ciências a mudança é contínua e progressiva. Dentro de um contexto cultural assim, mesmo uma sociedade religiosa não pode se mostrar simplesmente avessa a mudanças.

No Evangelho, ao falar sobre a religião, Jesus diz: “Não adianta colocar remendo novo em roupa velha. O remendo repuxa o pano e rasgão fica maior ainda. Ninguém coloca vinho novo em barris velhos porque o vinho novo arrebenta os barris velhos e tanto o vinho como os barris se perdem. Para vinho novo (que é o evangelho), temos de ter barris novos” (Mc 2, 21- 22). No Apocalipse, a única palavra que é escutada diretamente de Deus é: “Eu sou aquele que faço novas todas as coisas” (Ap 21, 5). Esta palavra de Deus ressoa hoje para cristãos e não cristãos como um novo apelo para nos abrirmos à permanente mudança inspirada pelo Espírito de Deus nas Igrejas e no mundo.

Marcelo Barros