quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

TdL em Mutirão 37

O VATICANO II - CINQUENTA ANOS DEPOIS

 
Pelo Pe. Prof. Dr. José Comblin *
In memorian

 
Síntese: Para o Autor, o Vaticano II chegou tarde. Não houve tempo suficiente para implementar seu espírito, porque, logo após seu encerramento, aconteceu a maior revolução cultural do Ocidente e os desafetos do Concílio acusaram-no dos problemas surgidos dessa revolução e foram ouvidos. Por isso, a Igreja não só continuaria tendo dificuldade de adequar sua linguagem segundo os novos tempos, mas, fixando-se em esquemas mentais do passado, até faria o movimento contrário. Assim, por um lado, o Vaticano II ficará conhecido na história como uma tentativa de reformar a Igreja, e, por outro, como um sinal profético, uma voz evangélica, uma chamada para olhar para o futuro - como Medellín, em relação à América Latina, também contestado, é um farol que mostra o caminho.

 
1. Antes do Concílio

 
A maioria dos bispos que chegou ao Concílio Vaticano II não entendia para que tinham sido convocados. não tinham projetos. Pensavam, como os funcionários da Cúria, que o Papa, sozinho, podia decidir tudo, e não era necessário convocar um concílio. Havia, porém, uma minoria muito consciente dos problemas do povo católico, sobretudo nos países intelectual e pastoralmente mais desenvolvidos. Lá, tinham experimentado episódios dramáticos ocasionados da oposição entre as preocupações dos sacerdotes mais inseridos no mundo contemporâneo e a administração vaticana. Sabiam o que tinham sofrido sob o pontificado de Pio XII, que se opunha a todas as reformas, tão esperadas por muitos. Todos os que buscavam uma inserção da Igreja no mundo contemporâneo, com seu desenvolvimento das ciências, sua tecnologia e nova economia, bem como seu espírito democrático, se sentiam reprimidos. Havia, pois, uma elite de bispos e cardeais que estavam vem conscientes das reformas que percebiam como necessárias e, então, decidiram aproveitar a oportunidade oferecida providencialmente por João XXIII. A Cúria não aceitava as ideias do novo Papa, e muitos bispos curiais estavam desconcertados, uma vez que o modelo de Papa de João XXIII era muito diferente do modelo dos Papas Pios, modelo considerado obrigatório desde Pio IX.

As comissões preparatórias do Concílio eram claramente conservadoras, e, por isso, no dia da abertura do Concílio, as perspectivas dos teológos e peritos trazidos pelos bispos mais conscientes eram bastante pessimistas. Porém, o discurso de abertura de João XXIII rompeu decididamente com a tradição dos Papas anteriores. João XXIII anunciou que o Concílio não se encontrava reunido para fazer novas condenações de heresias, como era de praxe. Disse que se tratava de apresentar ao mundo uma outra imagem de Igreja, imagem que a tornaria mais compreensível aos contemporâneos. A maioria dos bispos não entendeu nada e pensou que o Papa não tinha dito nada, porque não tinha mencionado nenhuma heresia. Para o Papa, não se tratava de aumentar o número de dogmas, mas de falar ao mundo moderno de tal modo que ele pudesse entender. Uma minoria entendeu a mensagem e percebeu que teria o apoio do Papa em sua luta contra a Cúria.

A Cúria tinha uma estratégia. Havia um jeito de anular o Concílio. As comissões tinham preparado documentos sobre todos os assuntos anunciados. Todos os documentos eram conservadores e não permitiam nenhuma mudança significativa em matéria de pastoral. Estes documentos seriam entregues às comissões conciliares, que os aprovariam, e o Concílio seria concluído em poucas semanas, com documentos inofensivos, que não mudariam nada. O importante era fazer uma lista de comissões com bispos conservadores e explicar ao Concílio que o mais prático seria aceitar as listas já preparadas pela Cúria, uma vez que os bispos da assembléia não se conheciam.

O primeiro que descobriu esta estratégia foi Manuel Larraín, bispo de Talca, no Chile, e presidente do CELAM. Ele, com Helder Câmara - eram amigos íntimos, acostumados a trabalhar juntos - foram avisar os cabeças do episcopado reformador. A Cúria tinha preparado uma lista de membros de comissões, escolhidos de tal maneira que se sabia que aprovariam os textos curiais sem dificuldade. Tratava-se, então, de rechaçar as listas preparadas pela Cúria e pedir que comissões fossem eleitas pelo próprio Concílio. Os líderes - Doepfer, de Munique, na Alemanha; Liénart, de Lille, na França; Suenens, de Malinas, na Bélgica; Montini, de Milão, na Itália, e mais alguns - tomaram a palavra e pediram que o próprio Concílio nomeasse os membros das comissões, o que foi aprovado por aclamação.

A conclusão foi que as novas comissões rechaçaram todos os documentos preparados pelas comissões preparatórias, o que foi uma afirmação do episcopado em relação à Cúria romana. O Papa estava feliz. Claro que, em poucas horas, Manuel Larraín e Helder Câmara fizeram listas de bispos latino-americanos que podiam integrar as comissões, e outros fizeram o mesmo em relação a outros Continentes, também porque Manuel Larraín tinha muitos contatos mundo afora. Desde o início, ficou claro que o Concílio travaria uma batalha após outra contra a Cúria romana. O Papa não tinha força para mudar a Cúria. Até hoje, os Papas são prisioneiros da Cúria, que teoricamente depende deles. A administração é mais forte do que o governante da Igreja, como sucede em muitas nações. A administração pode impedir qualquer mudança somente por sua inércia. Nem sequer João Paulo II se atreveu a intervir na Cúria. Impotente em Roma, ele foi ao mundo, onde foi aclamado triunfalmente.

A maioria conciliar que o grupo renovador conseguiu conquistar não queria ruptura e, por isso, sempre deu importância à minoria conservadora, que embora pequena, representava os interesses da Cúria. Por isso, muitos textos ficaram ambíguos, uma vez que depois de um parágrafo reformista vinha um parágrafo conservador que afirmava o contrário. Anunciavam-se temas novos, mas logo se abria espaço para temas velhos, da tradição dos Papas Pios. Essa ambiguidade prejudicou muito a aplicação do Concílio.

A minoria conciliar e a Cúria não se converteram. Com efeito, opõem-se ao Vaticano II e encontram argumentos nos próprios textos conciliares conservadores. Quando João Paulo II citava os textos do Vaticano II, citava os textos mais conservadores, como se os outros não existissem. Por exemplo, na Lumen Gentium, está claro o destaque que se dá ao Povo de Deus; evidentemente, quando se trata da hierarquia, o Povo de Deus desaparece e tudo continua como sempre. Em 1985, por instigação do então cardeal Ratzinger, a expressão ´"povo de Deus" foi eliminada do vocabulário do Vaticano. Desde então, nenhum documento romano faz referência ao Povo de Deus, que era tema importante da Constituição conciliar. O cardeal Ratzinger tinha descoberto que "povo de Deus" era um conceito sociológico, embora o conceito de "povo" não se encontre nos tratados de sociologia. O povo não existe sociologicamente, porque é um conceito teológico, bíblico!

Esta situação terá muita importância na ulterior evolução do Vaticano II, na Igreja. Desde o começo, houve um partido ao qual sempre se deu importância e poder, e que lutou contra todas as novidades. Nas eleições pontifícias - que, como sempre, são manipuladas por alguns grupos -, o problema do Vaticano II foi decisivo, e os Papas foram eleitos, porque se sabia de suas restrições aos documentos conciliares em tudo o que estes têm de novo. O atual Papa pode viver mais dez anos ou mais. Depois dele, podemos imaginar que novamente será eleito um Papa pouco comprometido com o Concílio, para usar um eufemismo, porque os grupos que defendem essa posição são muito fortes na Cúria e no colégio dos cardeais; e não há sinais de que as futuras nomeações possam trazer mudanças de orientação. As últimas, na Cúria, são eloquentes.

 
2. De 1965 a 1968

 
A história da recepção do Vaticano II foi determinada por um acontecimento totalmente imprevisto. 1968 é uma data simbólica, a da maior revolução cultural na história do Ocidente, mais que a Revolução francesa ou a Revolução russa, porque diz respeito à totalidade dos valores da vida e de todas as estruturas sociais. A partir de 1968, o que ocorreu foi muito mais do que um protesto dos estudantes. Foi o começo de um novo sistema de valores e de uma nova interpretação da vida humana.

O Vaticano II respondeu às interrogações e aos desafios da sociedade ocidental em 1962. Os problemas tratados, as respostas propostas, as discussões sobre as estruturas eclesiais, as ideias sobre uma reforma litúrgica, tudo isso tinha sido preparado por teólogos e pastoralistas, sobretudo a partir dos anos 30, nos países da Europa central: França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça e algumas regiões do norte da Itália. A sociedade européia, destruída pela guerra, estava reconstruída, e a Igreja ocupava um lugar de destaque na sociedade. Era governo na Alemanha, Itália, Bélgica, Holanda e tinha participação nos governos da França. Na verdade havia perdido contato com a classe operária; porém estava diminuindo numericamente em função da evolução da economia para os serviços. O número de católicos praticantes também estava diminuindo, embora não de maneira que chamasse a atenção. A Igreja contava com um clero fiel, um episcopado bastante instruído; embora socialmente pouco reformista, identificava-se com os partidos democrático-cristãos. O grande problema da Igreja era a tensão entre os setores mais comprometidos com a nova sociedade e o mundo romano de Pio XII, apoiado pelas Igrejas de países menos desenvolvidos e mais tradicionais, como a Espanha, Portugal, a América Latina, a Itália - sobretudo ao sul de Florença - e pelas populações católicas do Sudeste europeu. Os problemas eram estruturais; não atingiam nem os dogmas nem a moral tradicional.

Em 1968, começava abruptamente uma revolução total, portanto, que atingia todos os dogmas e toda moral tradicional, bem como todas as estruturas institucionais, tanto da Igreja como da sociedade. Em 1968, teria sido impossível o Vaticano II, porque não haveria ninguém ou quase ninguém para entender o que estava passando. O Vaticano II respondeu aos problemas de 1962; não tinha respostas aos desafios de 1968. Em 1968, o Concílio teria sido um Concílio conservador, assustado pelas radicais transformações culturais que então começavam.

As manifestações exteriores da revolução dos estudantes em todo o mundo ocidental desenvolvido foram reprimidas com facilidade. Por isso, muitos pensaram que ela teria sido um episódio sem consequências significativas. Na verdade, era o começo de uma nova era, que ainda se encontra em pleno desenvolvimento. 1968 significa mudança de toda a política, a educação, a organização da vida, a economia e de todos os valores morais.

1968 é uma data simbólica que evoca os grandes acontecimentos que mudaram o mundo na década dos anos 60, sobretudo a partir de 1965.

a. 1968 significou uma crítica radical a todas as instituições estabelecidas e a todos os sistemas de autoridade. Era a contestação global a toda a sociedade organizada tradicional. A crítica dirigia-se ao Estado, à Escola em todos os seus níveis, ao Exército, ao sistema jurídico, aos hospitais. Era uma crítica a todas as autoridades estabelecidas que mandam por força das estruturas e fazem de todos os cidadãos prisioneiros das instituições. É evidente que a Igreja católica está incluída nessa crítica. A Igreja católica era o típico modelo de um sistema institucional radicalmente autoritário. Ela foi imediatamente atacada e denunciada com vigor. As mudanças conciliares, tão típicas, não podiam convencer a nova geração. O Vaticano II era totalmente inofensivo, se comparado à revolução cultural iniciada em 1968.

b. 1968 iniciou uma luta contra todos os sistemas de pensamento, o que foi chamado de “os grandes relatos”. Os sistemas são formas de manipulação do pensamento, são expressões de dominação intelectual. Não se aceita nenhum sistema que tenha a pretensão de ser “a verdade”. Com isso, sofrem os dogmas e o código moral da Igreja católica, bem como toda a sua pretensão de “magistério”. O Vaticano II nem sequer podia imaginar que tal situação tivesse sido possível. Lá, não houve discussão de nenhum dogma, e todo o sistema de pensamento nunca foi questionado. Agora, a nova geração contesta todo o sistema doutrinal da Igreja católica, porque esse sistema não permite o livre exercício do pensamento. Não é que a nova geração queira negar todo o conteúdo doutrinal; não quer é aceitar todo um sistema, sem discuti-lo primeiro; e não quer aceitá-lo em bloco. Quer examinar cada elemento, aceitar ou não aceitar.

c. Simultaneamente se deu a explosão da revolução feminista. O descobrimento da pílula, que permite evitar a fecundação e que, portanto, facilita a limitação da natalidade, despertou universal entusiasmo entre as mulheres que tomaram conhecimento da novidade. Era um elemento básico para a libertação das mulheres, que assim deixavam de ser totalmente dependentes de maternidades repetidas. Também era uma novidade para a Igreja. Na Bíblia, nada havia sobre essa técnica. Os episcopados dos países socialmente mais desenvolvidos e o s teólogos consultados pelo Papa opinaram que, na moral cristã, não havia nada que pudesse condenar o uso da pílula. Todavia, o Papa deixou-se impressionar pelo setor mais conservador, embora minoritário, e publicou a encíclica Humanae Vitae, que teve o efeito de uma bomba. Muitos não conseguiam acreditar que o Papa tivesse assinado essa encíclica. A revolta entre as mulheres católicas foi enorme. Elas não aceitaram a proibição papal e aprenderam a desobediência. A partir desta data, veio o êxodo das mulheres. Ora, as mulheres são as que transmitem a religião. Quando, pois, as mulheres deixaram de ensinar a religião a seus filhos, apareceram gerações que ignoram totalmente o cristianismo. Muitos bispos ficaram desnorteados; não podiam fazer nada, porque o Concílio não havia sequer tocado no exercício do primado do Papa. O Papa decide sozinho, mesmo contra todos. fora o caso: o Papa havia decidido contra os bispos, os teólogos, o clero, os leigos informados. Por infelicidade, foi obra do Papa Paulo VI, que, por tantos méritos na história do Concílio, aparecia como um homem de abertura de mente. Por que justamente ele? De outro Papa ter-se-ia entendido melhor, embora o efeito produzido teria sido igual. Para muitos, a Humanae Vitae era um desmentido do Vaticano II. Nada tinha mudado!

d. 1968 e a sociedade de consumo. Até então, o consumo era regulado pelos costumes. Havia um consumo moderado e limitado. Os ricos não ostentavam sua riqueza. O consumo dependia da regularidade da vida: comida regulares e tradicionais, festas tradicionais com gastos tradicionais, num ritmo de vida em que o trabalho ocupava o lugar central. A partir da década de 60, o trabalho deixou de ocupar o centro da vida. De ora em diante, o centro se constitui na busca do dinheiro, a fim de pagar as férias, os fins de semana, as festas e o consumo festivo. O trabalho permite o consumo. O trabalho agrícola desaparece nos países mais desenvolvidos, e o trabalho industrial diminui. As estruturas sociais estimulam o consumo, e os que não podem consumir se consideram inferiores. As pessoas gastam o que não têm e pagam em 12, 48, 70 prestações. Pode-se consumir sem pagar logo. Paga-se depois de anos. Os jovens gastam o mais que podem.

e. O capitalismo descontrolado. A supressão de todas as leis que controlam os movimentos de capitais estimula a corrida à riqueza. A nova moral qualifica as pessoas pelo dinheiro que acumulam e pela ostentação de sua riqueza. De ora em diante, os donos do capital fazem o que querem e como querem, correndo o risco de provocar crises financeiras, cujas vítimas são os pequenos. Até a queda do comunismo na URSS, o magistério lutava contra esse comunismo e dava pouca atenção ao rápido crescimento de uma nova forma de capitalismo. Na América Latina, a Igreja reagia muito timidamente à conquista econômica por grandes centros capitalistas mundiais. Na prática, a Igreja vai esquecendo-se da Gaudium et Spes e vai aceitando a evolução do capitalismo descontrolado. A doutrina social da Igreja perdeu todo o sentido profético, porque na prática, não houve aplicação alguma em casos concretos. Na prática, o magistério aceitou o novo capitalismo.

Nada disso foi provocado pelo Concílio. Não se pode atribuir ao Vaticano II tudo o que sucedeu como consequência da grande revolução cultural do Ocidente. Mas essa revolução teve, sim, imediatas repercussões na juventude da Igreja. Todos sentiram que a instituição da Igreja estava sendo profundamente questionada e desprestigiada. Esse desprestígio não veio do Vaticano II, mas, sim, da grande crise cultural. O efeito mais visível foi a crise sacerdotal: uns 80.000 sacerdotes deixaram o ministério. Quase todos os seminaristas abandonaram os seminários. Pelos adversários do Concílio, tudo isso foi consequência do mesmo. Na verdade, nele não havia nada que pudesse explicar este fenômeno, nem explicar a saída de milhões de católicos leigos. Tudo se explica porém, a partir da revolução cultural da juventude.

 
3. A reação da Igreja foi a que se podia temer

 
Os Papas e muitos bispos aceitaram o argumento dos conservadores, segundo os quais os problemas da Igreja vinham do Vaticano II. Vários teólogos que tinham sido defensores e promotores dos documentos conciliares mudaram e adotaram a tese dos conservadores, entre eles o próprio Papa atual. Começaram a dizer que o Concílio “foi mal interpretado”. Por isso, o Papa convocou um Sínodo extraordinário, em 1985, por ocasião dos 20 anos do encerramento do Concílio, para lutar contra as falsas interpretações e dar uma interpretação correta. Na prática, a nova interpretação, a “correta”, consistia em suprimir tudo o que havia de novo nos documentos do Vaticano II. Um sinal emblemático foi a condenação da expressão “Povo de Deus”. Acabou-se a época das experiências, dizia João Paulo II. Praticamente, o que se fez foi repetir o que se tinha feito depois da Revolução francesa: fechar portas e janelas, a fim de cortar a comunicação com o mundo exterior e reforçar a disciplina, para evitar as saídas. Não se conseguiu, porém, evitar as saídas. O problema é que a Igreja já não conta com um imenso campesinato pobre. Na América Latina, os pobres vão para os evangélicos.

Desde então, na linguagem oficial, faz-se referência ao Concílio, sua mensagem permanece, porém, ignorada. O Concílio permanece na memória e na fundamentação das minorias sensíveis à evolução do mundo que nele buscam argumentos para pedir mudanças e respostas aos desafios do mundo atual. A juventude – os novos sacerdotes incluídos – não sabe o que foi esse Vaticano II, que, para eles, não suscita nenhum interesse. Estão mais interessados no catolicismo anterior ao Vaticano II, com sua segurança, sua beleza litúrgica e a justificação de um autoritarismo clerical que os exime dos problemas.

A reação da Igreja manifestou-se pela a volta à disciplina anterior. O símbolo dessa reação foi o novo Código de Direito Canônico, em que se mantém toda a estrutura eclesiástica do Código de 1917, às vezes, com uma linguagem menos autoritária e mais florida. O Novo Código fechou as portas a todas as mudanças que podiam inspirar-se no Vaticano II. Tornou-se historicamente inoperante o Vaticano II.

Em relação ao mundo, a prioridade dada à luta contra o comunismo – um comunismo já em plena decadência – fez com que a Igreja aceitasse, em silêncio – os silêncios da doutrina social da Igreja, dizia o padre Calvez -, o capitalismo desenfreado que se instalou na década de 70. Na América Latina, o Vaticano apoiou as ditaduras militares e condenou todos os movimentos de transformação social, em nome da luta contra o comunismo. A partir do governo Reagan, a aliança com os Estados Unidos manteve-se fiel, até a guerra do Iraque, que, pro fim e por um momento, abriu os olhos do Papa. Dessa forma, a Igreja, em sua pastoral real, se aliava aos poderosos do mundo e se condenava a ignorar o mundo dos pobres. As nomeações episcopais foram altamente indicativas.

Na América Latina, a reação da Igreja frente à revolução cultural iniciada no mundo desenvolvido foi muito dolorosa. Destruiu algo novo que estava nascendo. Pois, na América Latina, o Vaticano II significou uma mudança real. Foi o Vaticano II que converteu o episcopado e boa parte do clero, bem como dos religiosos. Havia sacerdotes, religiosos, leigos e também bispos que tinham feito uma opção pelos pobres. Em Roma, os bispos latino-americanos se encontraram e foram evangelizados pelos bispos da opção pelos pobres. O CELAM, com a aprovação de Paulo VI, convocou a assembléia de Medellín, que mudou os rumos da Igreja, porque tirou conclusões práticas do Concílio. Fez opção pelos pobres e comprometeu-se por uma mudança social radical; legitimou as comunidades eclesiais de base e a formação dos leigos a partir da Bíblia; optou pela ação política. As CEBs trouxeram uma estrutura nova, em que os leigos tinham possibilidade de iniciativa e um poder real, embora limitado. Em várias regiões, Medellín não foi aceito ou não foi aplicado, mas houve regiões importantes em que ele mudou a Igreja, e esta mudança provinha da aplicação do Vaticano II.

Todo esse movimento foi sistematicamente atacado, em Roma, com argumentos proporcionados por setores reacionários da América Latina. Desde 1972, a campanha contra Medellín foi dirigida por Alfonso López Trujillo. Apesar dessa campanha, em Puebla, em 1979, Medellín se salvou. Porém, no pontificado de João Paulo II, a pressão aumentou. As advertências romanas, as nomeações episcopais, as expressões de repressão contra os bispos mais comprometidos com Medellín tiveram efeito. A condenação da teologia da libertação, em 1984, queria dar o golpe final. A carta do Papa à CNBB, no ano seguinte, limitou um pouco o alcance da condenação, porém, a teologia da libertação continuou algo suspeito.

 
4. O que fica do Vaticano II

 
Hoje em dia, as reformas conseguidas pelo Vaticano II parecem-nos muito tímidas e totalmente inadequadas por causa de sua insuficiência. Ter-se-á que ir muito mais longe, porque o mundo mudou mais nos últimos 50 anos do que nos 2.000 anteriores.

Do Vaticano II destacamos o seguinte, que deve permanecer como uma base para as reformas futuras:

- O retorno à Bíblia como referência permanente da vida eclesial, acima de todas as elaborações doutrinais, os dogmas e as teologias.

- A afirmação do Povo de Deus como participante ativo na vida da Igreja, tanto no testemunho da fé como na organização da comunidade, com uma definição jurídica de direitos e com direito a recurso nos casos de opressão por parte das autoridades.

- A afirmação da Igreja dos pobres.

- A afirmação da Igreja como serviço ao mundo e sem buscar poder.

- A afirmação de um ecumenismo de participação mais íntima entre as Igrejas cristãs.

- A afirmação do encontro entre todas as religiões, incluindo as opções não-religiosas.

- Uma reforma litúrgica que use símbolos e palavras compreensíveis para os homens e as mulheres de hoje.

 
5. As condições da humanidade, hoje: em radical transformação

 
a. Como entender a fé?

 
A partir da modernidade, muitos cristãos perderam a fé ou imaginaram que a haviam perdido, porque tinham uma ideia equivocada da mesma. Atualmente, esse fenômeno se multiplica, porque a formação intelectual se desenvolveu, e muitos ficaram com uma consciência religiosa infantil ou primitiva, que eles logo rejeitam ou perdem, assim que chegam à adolescência.

Os povos primitivos, de cultura oral, e as crianças crêem tanto nos objetos religiosos como nos objetos de sua experiência. Por isso, é fácil imaginar que a fé é algo como a experiência imediata. Quando se dão conta de que não podem crer nos objetos da religião dessa forma – uma vez que adquirem espírito crítico -, crêem que perdem a fé, uma vez que a confundem com sua consciência religiosa infantil.

A fé é diferente da experiência imediata, do conhecimento científico ou do conhecimento filosófico. O objeto da fé é Jesus Cristo, sua vida. É aderir a essa vida e adotá-la como norma de vida, porque ela tem um valor absoluto, porque essa vida é a verdade: é assim que devemos ser homens e mulheres. Não é uma evidência que não permite dúvidas. É uma percepção de verdade, que nunca suprime uma fresta de dúvida, porque sempre é um ato voluntário e porque não se vê essa verdade. O crente não se sente obrigado a crer. É um ato de entrega de sua vida; é a eleição de um caminho. Não há evidência de que Jesus vive e está em nós, mas se reconhece, porque se sente uma presença que é um chamado repetido, apesar de todas as dúvidas.

Hoje em dia, o Papa condena como relativismo fenômenos próprios do ser humano atual, que não consegue mais entender a maneira tradicional de conhecer os objetos da religião. Estes já não fazem parte de sua experiência de vida. A fé é um conhecimento todos especial da vida de Jesus, incomparável com as certezas que ele adquire no dia a dia da vida. Esta condição do ser humano atual demanda uma profunda revisão da teologia da fé. Já está sendo feita esta revisão da teologia, mas ela não é divulgada, o que permite que milhões de adolescentes percam a fé, sobretudo porque não se lhes explica o que é.

 
b. A religião

 
Nossos contemporâneos deixam os atos litúrgicos oficiais da Igreja porque os acham chatos. A repetição do mesmo é chata. A repetição de “domingos do ano” durante tantas semanas é algo chato. A linguagem litúrgica é pior, porque se dá em língua popular. Quando a liturgia era em latim, era melhor, porque não se entendia. Uma vez que se entende, se nota que o estilo é insuportável. Ela se utiliza de uma linguagem pomposa, formalista, de uma linguagem de corte: “humildemente pedimos...” Ninguém fala assim hoje em dia. “Associamos nossa voz à voz dos anjos...”, fórmula convencional que não corresponde a nada na vida. E há centenas de fórmulas semelhantes. Os carismáticos salvam a situação, porém sua liturgia está longe de ser uma introdução ao mistério de Jesus.

 
c. A moral

 
Nossos contemporâneos não aceitam códigos de moral, nem que se lhes imponham ou proíbam condutas porque estão no código. Eles querem entender o valor dos preceitos ou das proibições. Ou seja: estão descobrindo a consciência moral que permite descobrir o valor dos atos. Não aceitam a voz de uma consciência que nada mais é do que a voz do “superego”. Antes, a base da moral cristã era a obediência à autoridade. Devia-se fazer ou não fazer, porque a Igreja o mandava ou o proibia. Por isso, tantas vezes os leigos perguntam: pode-se fazer isso? Se o sacerdote dizia que sim, o problema moral estava solucionado. Isso já pertence ao passado.

 
d. A comunidade

 
O cristianismo é comunitário. Porém, as formas tradicionais de comunidade tendem a debilitar-se. A própria família perdeu muito de sua importância, porque seus membros se encontram menos. A paróquia atual perdeu o sentido de comunidade. Estão aparecendo muitas novas formas de pequenas comunidades, baseadas na livre escolha. Essas comunidades terão capacidade de celebrar a eucaristia, o que supõe que haja uma pessoa apta para presidir a eucaristia em cada grupo de umas 50 pessoas. Não há nenhuma dificuldade doutrinal, uma vez que nos primeiros séculos a situação era essa e não houve problemas. Isto é fundamental, porque uma comunidade que não se une em torno da eucaristia, na verdade, não é uma comunidade cristã. Os sacerdotes estarão com o bispo de cada cidade importante, em tempo integral, para evangelizar todos os setores da sociedade urbana.

Evidentemente, não sabemos quando ou como isso chegará. É pouco provável que um Concílio que reúna somente bispos possa descobrir as respostas aos desafios do tempo. As respostas não virão da hierarquia, nem do clero, mas, sim, dos leigos que vivem o Evangelho no mundo por eles entendido. Por isso, temos que estimular a formação de grupos de leigos comprometidos simultaneamente com o Evangelho e com a sociedade humana em que trabalham.

O Vaticano II ficará na história como uma tentativa de reformar a Igreja no final de uma época histórica de 15 séculos. Seu único defeito é que veio tarde demais. Três anos depois de sua conclusão, caía na maior revolução cultural do Ocidente. Seus detratores o acusaram de todos os problemas surgidos dessa revolução cultural e, com isso, o mataram. Porém, o Vaticano II permanece um sinal profético. É uma voz evangélica, numa Igreja prisioneira de um passado que não sabe superar. Não pôde reformar a Igreja, como queria. Foi, porém, um chamado para olhar para o futuro. Ainda há movimentos poderosos que pregam a volta ao passado. Temos que protestar. Quando pessoas que nada entendem da evolução do mundo contemporâneo querem refugiar-se num passado sem abertura para o futuro, temos que denunciar. Para nós o Vaticano II é Medellín. Também quiseram matar Medellín. Medellín permanece como um farol que nos mostra o caminho.

Última reflexão: o futuro da Igreja católica está nascendo na Ásia e na África. Será muito diferente. Aos jovens há que se dizer: aprendam chinês!

 
In memoriam.


*Homenagem ao Autor, falecido aos 27 de março de 2011.



Fonte: Revista Eclesiástica Brasileira, julho de 2011, p. 629 – 641, Vozes.

terça-feira, 18 de outubro de 2011

TdL em Mutirão 36

JUVENTUDE: ROSTO DA TRINDADE.


O presente artigo tem como objetivo apresentar a juventude como rosto da Trindade Santa. A face mais bonita do Deus Uno e Trino que armou sua tenda no meio da humanidade, que se revelou, tornando-se assim uma indizível aventura de conhecer a Deus.

É uma grande aventura pensar e falar sobre o Deus de nossa fé, principalmente quando se pode cantar como faz a juventude que se prepara para o Dia Nacional da Juventude – 25 anos da Pastoral da Juventude Capixaba que acontecerá no último domingo do mês de outubro de 2011, na Praça do Papa, em Vitória - ES [1] :

“Dizem que o sol, deixou de brilhar

Que as flores mais belas não perfumam mais

Os jovens teriam deixado de amar

De crer na esperança de poder mudar

Que as lutas e os sonhos o vento espalhou

E que envelheceram as forças do amor

Se fosse assim que digam vocês

De quem é o rosto que ainda sorri

De quem é o grito que nos faz tremer

Defendendo a vida, o modo de ser

De quem são os passos marcados no chão

Unindo o compasso de um só coração

Enquanto existir um raio de luz

E uma esperança que a todos conduz

Existe a certeza, plantada no chão

Ternura e beleza não acabarão

Pois a juventude que sabe guardar

Do amor e da vida não vai descuidar

O rosto de Deus é jovem também

E o sonho mais lindo é ele quem tem

Deus não envelhece, tampouco morreu

Continua vivo no povo que é seu

Se a juventude viesse a faltar

O rosto de Deus iria mudar”.

Sobre a juventude há muitos pontos de vista para analisá-la; indico a classificação mais objetiva e sintética, construída em mutirão, que parte da perspectiva cristã católica e comprometida com milhares de grupos de jovens espalhados pelo Brasil.

As quatro visões de juventude [2] :

1. Visão Biocronológica: define a juventude em termos de idade, etapa de transição. Aquela que tem de 15 a 24 anos [3] .

2. Visão Psicológica: identifica a juventude com os conflitos pessoais em que tem a vida nas mãos, mas não tem o reconhecimento e a capacidade, etapa de construção da identidade: tempo de opções e definições.

3. Visão Sociológica: vê na juventude um grupo social e, dentro dele, diferentes setores.

4. Visão Cultural-Simbólica: procura ver a juventude em seu habitat cultural, produzindo movimentos culturais que acentuam a estética e o lúdico.

Para DICK (2003), estaria faltando, entre essas visões uma quinta: a Visão Jurídica ou Legal de Juventude – aquela que impera em muita leitura ou abordagem a respeito do tema [4] .

No Brasil, tanto as diretrizes da Secretaria Nacional de Juventude como o Plano Nacional de Juventude, definem como jovens aqueles que têm entre 15 e 29 anos. Mas o que é juventude?

LIBANIO (2004), diz que há um olhar duplo: o da sociedade para o jovem e o do jovem para si mesmo. A sociedade olha o jovem e o considera em fase importante do desenvolvimento de sua personalidade. Mas também, o vê como alguém subordinado e ainda submetido a uma marginalização do trabalho e das funções políticas. O jovem olha a si mesmo e entra numa idade de apropriação das diferenças que o afetam no campo sociopsicológico, ao mesmo tempo que se prepara para enfrentar situações adultas diferenciadas, passando do mundo particularista da família para o mundo universalista do trabalho e das relações sociais. Os grupos de jovens ajudam a integrar o modelo de família com a vida em sociedade. A escola surge como lugar intermediário da socialização entre a sociedade e a família [5] .

A CNBB (2007), afirma que, conhecer os jovens é a condição prévia para evangelizá-los. Não se pode amar nem evangelizar a quem não se conhece. Se busca conhecer a geração de jovens cuja evangelização se apresenta como um dos grandes desafios da Igreja neste início do século XXI. Destaque para a subjetividade, para as novas expressões da vivência do sagrado e a centralidade das emoções, enquanto elementos da nova cultura pós-moderna que influenciam no processo de evangelização dos jovens e no fenômeno da indiferença de uma parcela da juventude face à Igreja. (...) A evangelização da juventude interessa muito à Igreja e aos seus pastores. Temos um compromisso sério com a formação das novas gerações que, pressionadas por tantas propostas de vida, necessitam de muito discernimento,de coragem, de verdadeiros caminhos e, principalmente, de nossa presença amiga: “Os jovens têm o direito de receber da Igreja o Evangelho e de ser introduzidos na experiência religiosa, no encontro com Deus e no contato com as riquezas da fé cristã. E os pastores da Igreja têm grande desejo de lhes comunicar a Boa-Nova de Jesus Cristo e de acolhê-los na comunidade eclesial”. Estamos certos de que o presente e o futuro da própria Igreja dependem desta nossa opção “afetiva e efetiva” por eles, como, também, a nossa sociedade progredirá à medida que puder contar com cidadãos verdadeiramente capacitados a testemunhar, defender e propagar os valores do Evangelho, todos eles a favor da vida plena para o ser humano. (...) Desejamos, juntos, abrir caminhos para favorecer o desenvolvimento dos jovens, quanto ao anúncio do querigma, à educação aos valores cristãos, à formação bíblica e teológica, à iniciação à vida litúrgica, ao ensino religioso nas escolas e universidades, à educação para a solidariedade e para a fraternidade; à superação de preconceitos; à educação psicoafetiva; à formação na ação e para a cidadania. Estamos convictos de que a formação da juventude contribui para a promoção da dignidade de sua vida em todos os aspectos [6] .

FORTE (2005), diz que a Igreja provém da Trindade, é estruturada à imagem da Trindade e ruma para o acabamento trinitário da história. (...) A Igreja vem da Trindade: o universal desígnio salvífico do Pai, a missão do Filho, a obra santificante do Espírito edificam a Igreja como “mistério”, obra divina no tempo dos homens, preparada desde as origens, reunida pela Palavra encarnada, sempre de novo vivificada pelo Espírito Santo. A Igreja é ícone da Trindade Santa: por uma “não-mediocre analogia”, ela é comparada ao mistério do Verbo encarnado, na dialética do visível e do invisível, ao mesmo tempo em que a sua “comunhão” – una na diversidade das Igrejas locais, dos seus carismas e ministérios – reflete a comunhão trinitária. (...) A Igreja orienta-se para a Trindade: é Igreja dos peregrinos na conversão e reforma contínuas, em comunhão com a Igreja celeste, preparando-se desde já para a glória final [7] .

Em Medellín, a Igreja vê na juventude a constante renovação da vida da humanidade. A juventude é o símbolo da Igreja, chamada a uma constante transformação de si mesma. Por isso ela se esforça por desenvolver uma pastoral de conjunto, uma Pastoral da Juventude autêntica.

Em Puebla, a Igreja diz que a juventude é uma atitude face à vida na sua etapa transitória e destaca seus traços mais característicos: seu espírito de aventura, sua capacidade criadora, seu desejo de liberdade, o fato de serem sinal de alegria e felicidade, exigindo autenticidade, simplicidade e humildade. A Igreja confia nos jovens, sendo eles a sua esperança. Eles são os dinamizadores do corpo social e do corpo eclesial, por isso a Igreja faz a evangélica opção preferencial pelos jovens com vistas à sua missão no continente.

Em Santo Domingo, a Igreja quer abrir espaços de participação para a juventude através de uma pedagogia da experiência, promovendo o protagonismo através do método VER-JULGAR-AGIR-REVER-CELEBRAR.

Em Aparecida, a Igreja propõe aos jovens o encontro com Jesus Cristo vivo à luz do Plano de Deus, que lhes garanta a realização plena de sua dignidade de ser humano; privilegiando na Pastoral da Juventude processos de educação e amadurecimento na fé como resposta de sentido e orientação de vida. A Pastoral da Juventude ajudará os jovens a se formar de maneira gradual, para a ação social e política e a mudança de estruturas, conforme o desejo do Papa João XXIII um mês antes da abertura do Concílio Ecumênico Vaticano II: “A Igreja se apresenta tal como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a Igreja dos pobres”.

BOFF (1999), diz que a concepção trinitária de Deus nos propicia uma experiência global do mistério divino. Cada ser humano se move dentro de uma tríplice dimensão: na transcendência, da imanência e da transparência. Pela transcendência ele se ergue para cima, rumo às origens de si mesmo e às referências supremas. O Pai emerge nesta experiência, pois Ele é o Deus da origem sem ser originado, é o Deus do princípio sem ser principiado, é o Deus da fonte da qual tudo promana. É a referência última. Pela imanência o ser humano se encontra consigo mesmo, com o mundo a ser organizado, com a sociedade que ele constrói em relações horizontais e verticais. A imanência constitui o espaço da revelação humana. O Filho é por excelência a revelação do Pai; em sua encarnação assume a situação humana como é, em sua grandeza e decadência. Ele quer uma sociedade fraterna e sororal que reconhece suas raízes. Pela transparência queremos ver unida a transcendência com a imanência, o mundo humano com o mundo divino, a tal ponto que, respeitadas as diferenças, se façam transparentes. No esforço humano queremos experimentar o dom de Deus; anelamos por um novo coração e pela transformação do universo. O Espírito Santo constitui a força de amorização divina e humana, a transfiguração de tudo. Que seria o ser humano se não tivesse o Pai, se não se enraizasse em algo maior e não fosse envolvido num mistério de ternura e de aconchego? Seria como um bólido perdido no espaço e um peregrino sem rota e sem rumo. Que seria de nós, se não tivéssemos o Filho, se não soubéssemos de onde viemos, se não acolhêssemos a cada instante a vida recebida como dom, se não pudéssemos amar o Pai maternal ou a Mãe paternal? Que seria da pessoa humana se não tivesse relações dialogais e fraternas, se não pudesse abrir-se a um tu? Não seria apenas um peregrino sem rota e sem rumo, seria um caminhante solitário num mundo agressivo e opaco. Que seria do ser humano sem o Espírito Santo, sem um mergulho em seu próprio coração, sem a força de ser e de transformar a criação? Seria um peregrino sem entusiasmo e privado da coragem necessária para a caminhada. Sem o Espírito não poderíamos crer em Jesus nem entregar-nos confiadamente ao regaço do Pai. Assim como a transcendência, a imanência e a transparência constituem a unidade dinâmica e integral da existência, de forma análoga o Pai, o Filho e o Espírito Santo se unificam integradoramente na comunhão recíproca plena e essencial. Cada pessoa humana surge como imagem e semelhança da Trindade; o pecado introduz uma ruptura nesta realidade, sem destruí-la totalmente. A sociedade foi eternamente querida por Deus para ser sacramento da comunhão trinitária na história; o pecado social e estrutural denigre esta vocação que sempre permanece como um chamamento a ser atendido mediante as libertações históricas que visam criar as condições para que o Pai, o Filho e o Espírito Santo possam ser significados no tempo [8] .

A juventude experimenta a Trindade como o centro ardente da fé pois ela vem dos Apóstolos; a mesma fé trinitária que a Igreja sempre professou a partir de Jesus de Nazaré.

[1] TREVISOL, Jorge. O Mesmo Rosto. Intérprete: Artistas Capixabas. In: DNJ - DIA NACIONAL DA JUVENTUDE. 25 anos da PJ Capixaba - Chega de Violência e Extermínio de Jovens. Vitória: Independente, 2011, 1DVD, faixa 1.

[2] CELAM - Conselho Episcopal Latino-Americano. Seção Juventude - SEJ. Civilização do Amor: Tarefa e Esperança. Orientações para a Pastoral da Juventude Latino-Americana. São Paulo: Paulinas, 1997.

[3] A UNESCO defende esta concepção.

[4] DICK, Hilário. Gritos Silenciados, Mas Evidentes - Jovens Construindo Juventude na História. São Paulo: Edições Loyola, 2003.

[5] LIBANIO, J.B. Jovens em Tempos de Pós-Modernidade - Considerações socioculturais e pastorais. São Paulo: Edições Loyola, 2004.

[6] CNBB. Evangelização da Juventude - Desafios e Perspectivas Pastorais. São Paulo: Paulinas, 2007.

[7] FORTE, Bruno. A Igreja Ícone da Trindade. 2a.ed. São Paulo: Loyola, 2005.

[8] BOFF, Leonardo. A Trindade e a Sociedade. 5a.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.

Emerson Sbardelotti

TdL em Mutirão 35

IGREJA DOS POBRES: FUNDAMENTO DE UMA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO 

 
INTRODUÇÃO

 
No meio do século passado, a Igreja Católica se encontrava em uma encruzilhada entre prosseguir com uma dogmática que esteve presente por toda a Idade Média ou refletir as mudanças advindas do mundo moderno. Tínhamos uma atmosfera de tensão que se refletia na Cúria romana, a saber: de um lado estava a realidade centralizadora que sempre caracterizou a estrutura eclesial e do, outro, uma proposta de abertura para o diálogo com a realidade moderna, com suas dúvidas, desconfianças e com seu choque de injustiças.
Neste artigo, pretendemos refletir em que panorama se desenvolveu a Igreja dos pobres na América Latina, sua fundamentação teológica e o que constitui efetivamente esse ser dos pobres como base para uma Teologia da Libertação. A pesquisa tem como foco analítico os seguintes pontos: (1) João XXIII e o Concílio Vaticano II, (2) Medellín e a Igreja da América Latina, (3) Teologia da Libertação e (4) Eclesiologia da Libertação.

 
1. JOÃO XXIII E O CONCÍLIO VATICANO II

 
O papel de João XXIII no Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965) foi de singular importância. Não somente pelo ato de conclamar o referido concílio, mas por introduzir nele uma perspectiva de atualização para a Igreja mundial (aggiornamento). É inegável que grande foi a surpresa quando o "papa bom”, até então considerado um papa de transição, abriu as portas da Igreja que pareciam seladas para o mundo moderno. O Espírito acordara de um sono duradouro, era, portanto, hora de trabalhar para abri-lhe caminho. (C.f SANTOS, 2OO7, p.19).
João XXIII expressa na bula Humanae Salutis o anseio pelo qual passou ao realizar o primeiro anúncio do Concílio (25 de janeiro de 1959): "foi como a pequena semente que depusemos com ânimo e mãos trêmulas”. Nada mais humano ao realizar ato tão divino. O Papa sentia que a Igreja tinha por obrigação demonstrar vitalidade, jovialidade (renovação) e irradiar novas luzes ao surgimento de uma nova era (C.f João XXIII, 1961, p 254). Esse aggiornamento era mais que necessário, pois a mais de 16 séculos a Igreja esteve presa a uma dogmática intra ecclesia para, enfim, anunciar a sua abertura ad extra.
Vejamos o que diz João XXIII em seu pronunciamento às vésperas do Concílio Vaticano II, datado de 11 de setembro de 1962: "Em face aos países subdesenvolvidos, a Igreja se apresenta como é e como quer ser: a Igreja de todos e particularmente a, Igreja dos pobres” (João XXIII apud Aquino, 2005, p 209). Apesar de não termos tido no concílio o aprofundamento que necessitara a Igreja dos pobres, a fala de João XXIII aponta para um viés que até então era pouco debatido: o de uma Igreja que deve assumir em si a perspectiva dos que estão à margem do mundo.
O Espírito deu sinais de que essa discussão não passaria despercebida, como podemos comprovar através de históricas intervenções. É de especial atenção a manifestação do cardeal Lercaro:
"O mistério de Cristo nos pobres não aparece na doutrina da Igreja sobre si mesma e, no entanto, essa verdade é essencial e primordial na revelação (...). É nosso dever colocar no centro deste Concílio o mistério de Cristo nos pobres e a evangelização dos pobres” (Lercaro, apud Aquino, 2005, p.209).
Essa manifestação resultou posteriormente resultou em uma reflexão contida no capítulo 8 do documento conciliar Lumen Gentium. Corroborando com Lercaro destacamos o pronunciamento do bispo de Tornai, Charles-Marie Himmer, pelo significado que expressa e por seu peso, quando em aula conciliar afirmou: "primus lócus in Ecclesia pauperibus resevandus est” (o primeiro lugar na Igreja é reservado aos pobres). De fato, a causa dos pobres estivera longe de ser ponto central do concílio, a não ser por intervenções pontuais, pois "esta não era a temática que constituía efetivamente o espírito conciliar” (SOBRINO, 1982, p.101).
Havia no concílio um corpo de bispos que representavam os países do "terceiro mundo” e que gozavam de bastante simpatia do papa João XXIII. Nele estava presente nosso saudoso Dom Helder Câmara. Astuto e movido por uma insistência evangélica torna-se uma das referências do grupo da "Igreja dos pobres”. Certa vez, perguntado por um jornalista se esse grupo consistia mais um grupo de pressão, respondeu:
Gosto muito da expressão que nos vem de nossos irmãos franceses: "Igreja servidora e pobre”. O Santo Espírito nos interpelou, nos convocou. Abriu-nos os olhos sobre o dever de cristãos, sobretudo de pastores, a fim de agirmos como o Cristo que, pertencendo a todos, se identificou com os pobres, os oprimidos, com todos aqueles que sofrem. Começamos a procurar como a Igreja toda, especialmente cada um de nós, poderia ser "servidor e pobre” (BEOZZO, 1993, p.95).
Essa "pressão” vira "expressão” de vida quando, ao término do Concílio, celebrando a eucaristia na catacumba de Domitila, o grupo da Igreja dos pobres firma um pacto de propagação de uma Igreja servidora e pobre, para "obterem a graça de serem plenamente fiéis ao Espírito de Jesus „que vos consagrou e vos enviou para evangelizar os pobres‟ (Lc 4,18)” (C.f BEOZZO, 1993, p. 96). Esse compromisso ficou conhecido como o Pacto das Catacumbas[1]. Nele estiveram presentes alguns bispos brasileiros[2], que tinham por objetivo expressar com verdade aos "irmãos no Episcopado” o compromisso de viverem uma vida de pobreza, de rejeitar todos os símbolos ou privilégios do poder e de fazer dos pobres o local por excelência para se exercer os ministérios episcopais. Os bispos encerram o texto com um "ajuda-nos Deus a sermos fiéis”, demonstrando que uma Igreja dos pobres é, de fato, uma fidelidade a Deus.

 
2. MEDELLÍN E A IGREJA DA AMÉRICA LATINA

 
O Episcopado latino-americano animado em colocar em prática as decisões do Vaticano II, marcou passo na história, quando após três anos do término do Concílio, realizou a segunda Conferência Episcopal latino-americana na cidade de Medellín.
Medellín refaz, num certo sentido, o Vaticano II e, em muitos pontos dá um passo além: aí emerge pela primeira vez a importância das comunidades de base, esboça-se a teologia da libertação, aprofunda-se a noção de justiça e de paz ligadas aos problemas de dependência econômica, coloca-se o pobre no centro da reflexão do continente (BEOZZO, 1993, p. 117-118).
Medellín prossegue na reflexão iniciada no Vaticano II e por seu incentivador João XXIII. O Papa bom, através de suas encíclicas sociais, toca de forma comprometedora a Igreja da América Latina (Cf. BEOZZO, 1995, P.118). No decorrer do Concílio, como vimos antes, surgiu uma corrente que colocava os pobres como centro da ação evangelizadora e por isso comprometia-se com eles. É, pois, nesta linha que se encontravam os bispos que participam de Medellín.
Conscientes da realidade do continente, os bispos reunidos em Medellín reconhecem que a Igreja não poderia ficar indiferente as injustiças sociais existentes na América Latina. O documento que traz as Conclusões de Medellín está carregado de uma profunda solidariedade para com o povo que sofre. Nele os bispos assumem que a Igreja da América Latina esteve letárgica e, por isso, sentem-se obrigados, como pastores, a dar voz aqueles que não a têm:
"Um surto de clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte. Agora nos estais escutando em silêncio, mas ouvimos o grito que sobe de vosso sofrimento...” (MEDELLÍN, 1979, P.143).
Foi no alvorecer de Medellín que se gestou a Teologia da Libertação (Cf. Oliveros, 1990, p. 30). Isso se deu por uma coesão no episcopado latino-americano e por uma situação histórica popular de opressão e libertação. Na Conferência, a Igreja se compromete a denunciar a carência injusta dos bens necessários para sobrevivência da maioria na América Latina e compromete-se a viver juntos deles (Cf. MEDELLÍN, 1979, p.145). Orienta, portanto, que seus trabalhos pastorais sejam realizados nos setores mais pobres e necessitados.
Percebe-se, todavia, que a Igreja se apropriou da temática dos pobres. Não como meros receptores de um "assistencialismo caridoso”. Em Medellín a Igreja se faz pobre! Isto é, assume a missão deixada por Jesus que sendo rico se fez pobre por nós, para enriquecer-nos com sua pobreza (2Cor 8,9), e compromete-se a "apresentar ao mundo um sinal claro e inequívoco da pobreza do Senhor”. (MEDELLÍN, 1979, p. 150).
A semente está lançada e começa a germinar no seio das comunidades latino-americanas uma experiência de fé que emerge da vida ameaçada e de uma Igreja profética que ouve o clamor do povo. Nasce nas comunidades de base um novo modo de se fazer teologia, fruto de uma prática pastoral anunciada por Medellín.

 
3. TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

 
A teologia da libertação nasce do rejuvenescimento que o Vaticano II causou na Igreja da América Latina. Pela primeira vez na história, surge um modo de se fazer teologia tendo como premissa a situação dos povos e das pessoas que constituem o continente latino-americano[3]. A teologia da libertação traz a realidade dos povos para ser aprofundada a luz da fé, oferecendo uma nova visão da missão da Igreja no nosso continente.
Medellín, como vimos anteriormente, destacou de forma profética a situação de injustiça em que viviam os povos de diversos países latino-americanos e esta constatação virou uma bandeira de muitos em favor dos menos favorecidos, o que impulsionou a vários cristãos a comprometerem-se em desenvolver uma nova teologia: "uma nova consciência eclesial começou a se formular a partir de um novo modo de viver a fé daqueles que estavam comprometidos com os pobres e sua libertação” (OLIVEROS, 1990, p.30). Cria-se uma nova concepção do que é fazer teologia na América Latina, a novidade da teologia da libertação foi descobrir que não somente falar de Cristo configura a sua presença no meio dos pobres. Seu pensamento transformador foi se compromete com as pessoas exploradas, a maioria em nosso continente. O próprio Jesus em oração nos diz: "Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, por teres ocultado isso aos sábios e aos inteligentes e por tê-lo revelado aos pequeninos” (Mt 11, 25-27). De fato, é nos pequeninos desta terra que se configura mais claramente o Mistério de Deus.
Ao contrastar as desigualdades institucionalizadas na América Latina, viu-se que o estado de pobreza que a maioria esmagadora se encontrava não poderia ser a vontade de Deus. A experiência de Moisés com o povo de Israel serviu de base bíblica para se (re)compreender a missão da Igreja. A situação desumana de escravidão e pobreza impulsionaram as reflexões à luz da Palavra de Deus. Viver a Boa Nova implicava necessariamente em uma nova consciência do "ser” e do "como ser” Igreja. A referência do "ser Igreja” está vinculada ao modo de como Igreja a (instituição) se apresenta ao se contrastar com uma realidade desumana e ser tocada por ela, à de se buscar novas práticas pastorais que respondam as necessidades do povo que está preso em cativeiro[4]. Por outro lado, a idéia do "como ser” quer um esforço de reflexão epistemológica da Igreja aos novos desafios e isso é o que faz uma eclesiologia da libertação.
Uma fisionomia nova, um rosto novo de Igreja que tem o Espírito de Medellín foi a base para o desenvolvimento da eclesiologia da libertação. As Comunidades Eclesiais de Base são o exemplo da reunião de cristãos (ecclesia) comprometidos com a fé no Deus de Jesus, e por isso, atuantes no processo de libertação do povo.
A Igreja dos pobres na América Latina não nasce somente de um esforço acadêmico. Ela nasce, primeiramente, da experiência do povo que sofre. Mesmo sem a idéia de teologia o povo latino-americano se recusa a entregar-se a uma estrutura de morte, por isso, emerge dele várias práticas libertadoras[5]. Somente a partir desta prática é que a Igreja se vê impulsionada a fazer uma reflexão eclesiológica. Essa reflexão é caracterizada como o ato segundo, pois o ato primeiro é práxis (GUTIERREZ, 2000, p.18), uma reflexão crítica a luz do Evangelho sobre a vida e a prática cristã eclesial, abre-se neste contexto uma nova forma de anunciar o querigma.

 
4. ECLESIOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

 
A teologia da libertação viu na Igreja dos pobres a fidelidade mais singular à pessoa de Jesus Cristo. Nela, se encontra um Deus que ouve o clamor do povo (Ex 3,7b), essa experiência eclesial se tornou a base práxica para sua sustentação teológica.

 
A Igreja dos pobres despertou várias desconfianças a respeito da sua unidade eclesial, como uma continuação da Igreja de Jesus Cristo: Una, Santa, Católica e Apostólica. Vejamos, portanto, como a Igreja dos pobres não fere essa unidade, pelo contrário, à torna mais explicita, uma vez que tem os pobres como o centro de sua reflexão teológico/pastoral.
Um só Deus, um só Senhor, um só batismo, um só Espírito, como expressa São Paulo.

 
Na verdade existe um só Senhor, Jesus Cristo, e Jesus histórico, crucificado, servo de Javé e ressuscitado; existe um só Deus, que quer vida aos homens, escuta o clamor dos oprimidos, morre com eles na história e mantém sempre vivos os gemidos de parto de uma nova criação; existe um só Espírito, renovador da história, doador de vida e que fala pelos profetas de outrora e pelos atuais (SOBRINO, 1982, p.111).
Podemos perceber a unidade dos pobres desta Igreja, nela se expressa os pobres como sujeitos ativos desta realização histórica com todos os percalços que a situação de pobreza os coloca. Quando a Igreja se expõe a ouvir as mazelas pelas quais passam os pobres, a enxergar o exemplo de fé que é a vida deles, ela realiza o milagre de socializar que o núcleo da fé é algo que não se divide, anuncia-se. Não se trata de uma predileção de ordem social. Trata-se, sobretudo, de uma unidade com todas as instituições e pessoas de bem, agora de um formato macro, que tem os pobres como fio condutor da ligação com o Ressuscitado.

 
A. A santidade contida na Igreja dos pobres

 
A característica de "santa” atribuída a Igreja é uma característica lógica, pois nela se configura um sinal de salvação, e é ela a continuadora do sacramento histórico do amor de Deus, seria uma contradição dizer que ela não é santa (SOBRINO, 1982, p.114). A problemática se estabelece em reconhecer que a Igreja como instituição imersa em uma realidade está em si, configurada em uma estrutura de pecado é, portanto, também, pecadora. Quem concede a característica de santidade a Igreja, é Deus, "e assim não cremos simplesmente na Igreja santa, mas em Deus que santifica a Igreja” (SOBRINO, 1982, p.115).
A Igreja dos pobres reconhece a dimensão pecadora e santa da Igreja. O que a Igreja dos pobres faz é desenvolver características concretas ao amor e ao pecado, nos mostra que para dar visibilidade a santidade contida na Igreja, a práxis do amor tem que ser concreta (perdoem-me a redundância), não como propostas ou discursos "benevolentes”, mas de recriar uma nova realidade do seio de suas comunidades. Para a Igreja dos pobres, a santidade não está contida no estereótipo que vestem seus representantes, mas, aí a pirâmide se inverte, a santidade salvará o mundo na medida em que a Igreja se autoassuma como serva. A santidade nasce a partir de baixo, da solidariedade que brota dos pobres, da comunhão com aqueles que foram perseguidos e martirizados. "Optar pelos pobres é automaticamente optar pela forma de santidade do Servo” (SOBRINO, 1982, p.118). Recupera, portanto, a dimensão de santidade que fora disseminada por Jesus, a quenose. Sem essa santidade a Igreja não encontraria em si a verdade que a constitui.

 
B. Sua dimensão universal

 
A catolicidade que constitui a Igreja é a representação da sua universalidade, isto é, a Igreja enquanto católica tem como centro a totalidade do mundo, o que implica:
Visto que nem todos são "homens” da mesma maneira no que se refere a seus meios, direitos e liberdades, aquela comunidade em que todos verão conjuntamente a glória de Deus é criada através da eleição dos humildes, ao passo que os poderosos incorrem no juízo de Deus (SOBRINO, 1982, p. 119-120).
Isso não quer dizer, que se fira a universalidade, pelo contrário, o fato de ser universal, carrega em si uma tradição histórica pelos os que sempre estiveram escondidos da totalidade. O que a Igreja dos pobres faz, é demonstrar que essa parcialidade para com os que sofrem é uma forma práxica para um amor universal. Nesse mesmo sentido, percebe-se que a Igreja dos pobres em nível "local” desenvolve claramente uma originalidade com personagens próprios[6] e a partir de figuras do passado cria uma autoconsciência para reler sua a história.

 
C. Tradição apostólica

 
A apostolicidade que constitui a Igreja serve para demonstrar a continuidade de sua ligação direita com os apóstolos, em ordem cronológica e a continuação de uma estrutura eclesial apostólica. A Igreja se constitui em si mesma missionária, "ela existe para evangelizar” (Evangelii Nuntiandi, 1975, n.14). E evangelizar é afirmar que todo o caráter próprio da Igreja (oração, vida religiosa, escuta da Palavra, etc.) não teria sentido pleno senão se converter em testemunho.
A Igreja dos pobres é uma Igreja autenticamente missionária, ela adquire prioritariamente essa característica porque se faz pobre. Isso quer dizer, que essa primazia da essência se configurou mais verdadeira quando os pobres não foram somente os destinatários da missão, mas quando eles foram constituídos missionários. "Não basta dizer que a práxis é o ato primeiro. É necessário considerar o sujeito histórico desta práxis: os que até agora estiveram ausentes da história” (GUTIERREZ, 1977, p.42).
Com o receptor da missão sendo missionário, surge aí uma conotação própria da sua realidade, uma vez que os pobres tornam-se anunciadores da Boa Nova, tornam-se, também, denunciadores das estruturas pecaminosas. Cabe a Igreja perceber que quando ela se converte em Igreja dos pobres esta se encontra mais fielmente ligada a sua tradição, pois, qualquer pessoa que não está inserida na realidade de sofrimento, desesperança, humilhação que passa a grande maioria dos habitantes desta terra, não refletirá com propriedade a tradição apostólica. Os pobres oferecem a direção a ser seguida!
Percebe-se, portanto, que uma Igreja que se constitui em: Una, Santa, Católica, Apostólica e dos pobres, desenvolve em si uma ortodoxia mais propriamente evangélica.

 
Veremos nos dois pontos seguintes de que forma o ser dos pobres configura em si um critério de identidade singular ao passo que é constitutivo da Igreja de Jesus e como os sujeitos/destinatários privilegiados do anúncio do Reino modificam de forma estrutural a Igreja.

 
4.1 O SER DOS POBRES COMO NOTA DA IGREJA DE JESUS

 
No caminho elementar que constitui a Igreja dos pobres está a sua fidelidade a Jesus Cristo, principalmente pela característica essencial em ser dos pobres. Há quem pense que a dimensão dos pobres na Igreja refere-se a um vertente social contida nela, como se Igreja tivesse somente uma função assistencialista com referência aos menos favorecidos.

 
Uma Igreja dos pobres não é aquela que se coloca fora da realidade de conflito que a cerca, propondo-se somente a oferecer seu auxílio e nem aquela que o faz somente por um conceito ético. Ser dos pobres é algo constitutivo do próprio ser Igreja, é algo que perpassa os conceitos puramente sociológicos ou uma dimensão particularizante de classe social. Afirmar teologicamente sobre a Igreja dos pobres, é dizer que o Espírito de Deus que animou Jesus a anunciar a Boa Nova (Lc, 4, 18-19) é o mesmo que deve orientar a vivência eclesial de sua herdeira, traz portanto, uma questão fundamental de ortopráxis eclesial e de ortodoxia teológica (AQUINO, 2005, p.210), isto é, de uma forma de ser cristão e de seguir Jesus.
No centro da vida da Igreja está a realização do Reino de Deus. Essa centralidade é circunstância sine qua non para a vivência de um cristianismo que tem como princípio a vida e morte de Jesus de Nazaré. Em Mateus 5, quando Jesus proclama as Bem-Aventuranças e inverte o conceito de "felizes”, assumi-se de fato que todos os desgraçados e infelizes: os pobres, aqueles que sofrem, que choram, que são perseguidos, na verdade, que para imensa maioria "não contam”, a eles é reservado o Reino de Deus.
Se como vimos, o Reino está, sobretudo para os pobres e no centro da vida da Igreja se encontra a sua implantação, portanto, uma Igreja que não está constitutivamente para os pobres significa que não está para o Reino, pode-se afirmar que nem Igreja se configura! A felicidade dos bem aventurados não está na pobreza, na fome, na dor ou na perseguição; está na presença de Deus junto deles (VIGIL, p 62). Uma Igreja que se proclama como "Sacramento de Cristo” (LG.1, 1964), isto é, como sinal visível de sua presença entre nós, não pode negligenciar o fato de que a vida de Jesus de Nazaré foi sempre ao lodo dos últimos, assim como também sua morte (Mt 15,27; Lc 22,37). A Igreja que é herdeira desta realidade histórica (SOBRINO, 1982, p. 107) não pode esquecer esse ensinamento eclesiogênico[7].
Assumir a realidade de miséria, dor, sofrimento, martírios é afirmar que todo princípio de organização da Igreja se faz a partir dos pobres, não como "parte” dentro dela, mas como autêntico lugar teológico de compreensão da práxis cristã. Não queremos afirmar aqui que o ser "dos pobres” esgota a identidade da Igreja, mas que é fundamentalmente um dado de fé. A Igreja de Jesus Cristo é a Igreja dos pobres.

 
4.2 O SER DOS POBRES COMO PRINCÍPIO ESTRUTURADOR DA IGREJA EM SUA TOTALIDADE.

 
Na medida em que a Igreja percebe, na fidelidade a pessoa de Jesus de Nazaré, os pobres como ponto de partida e de convergência da sua ação pastoral ela se vê impelida a dar demonstrações claras desta vivência. Destarte, os pobres configuram uma forma própria do ser Igreja na medida em que encontram na sua vida comunitária a ligação com Deus.

 
Percebemos, pois, que a configuração feita pelos pobres na Igreja que junto deles se estrutura torna-se perceptível na maneira em que: celebram os sacramentos, assumindo o sinal como festa da vida, na forma como fazem a leitura da Palavra de Deus, reconhecendo nela a sua realidade de dor e o rosto de um Deus que caminha junto e liberta e nos cânticos que nos entoam mais diversos momentos celebrativos, que revigora a força de estar lutando por um novo céu e uma nova terra (Cf. Ap 21,1).

 
A fé faz com que os pobres se neguem a entregar-se ao acaso. Converter as estruturas neste conceito de rocha viva (1Pd 2,5a) é saborear a utopia do Reino que "lhes foi preparado deste a criação do mundo” (Mt 25,32).

 
CONCLUSÃO

 
Nossa intenção ao escrever o presente artigo foi demonstrar, mesmo que não profundamente, de que forma a Igreja dos pobres é fundamento para a teologia da libertação. Levamos em conta a problemática que decorre da particularização existente neste modelo de Igreja para explicitar que é um requisito estritamente evangélico. Percorremos do Vaticano II à sua influência na Igreja da América Latina, que desenvolveu suas reflexões próprias, para enfim, demonstrar que essa opção pelos pobres não recai em um erro de ortodoxia, pelo contrário demonstra a fidelidade mais singular de uma Igreja que caminha nos passos de Jesus de Nazaré.
Neste artigo realizamos um pequeno ensaio de reflexão com o sentimento de percorrer os caminhos já trilhados por muitos. Acreditamos que a Tradição de uma Igreja sempre viva não se coloca jamais longe dos pobres desta terra. Demonstramos, aqui, a nossa convicção na Igreja Una, Católica, Apostólica e dos Pobres... É com e por eles que somos a Igreja de Cristo, do Ressuscitado!

 
[...] Mas é importante, Mariama, que a Igreja de teu filho não fique em palavra, não fique em aplauso. Não basta pedir perdão pelos erros de ontem. É preciso acertar o passo de hoje sem ligar ao que disserem. Claro que dirão, Mariama que é política, que é subversão. É Evangelho de Cristo, Mariama [...]. (D. Helder Câmara, 1982).

 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 
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VIGIL, José Maria [org.]. Descer da Cruz os Pobres: Cristologia da Libertação. São Paulo: Paulinas, 2007.

 
Notas:

 
(1) Pode-se constatar na obra de: KLOPPEMBURG, Boaventura. Concílio Vaticano II,Vol V, Quarta sessão. Vozes, 1966.

(2) Para mais informações ver em: BEOZZO, José Oscar. Nota sobre os participantes da Celebração do Pacto das Catacumbas.

(3) Tem-se como marco principal da teologia da libertação, o livro de: Gustavo Gutierrez.Teologia da Libertação.Petrópolis, Vozes, trad. Jorge Soares, 1976.

(4) Pode-se aprofundar nesse sentido no livro de: BOFF, Leonardo. Teologia do Cativeiro e da Libertação. São Paulo: Vozes, 1980.

(5) Surgem sindicatos, movimentos populares, associação de moradores, de mães, etc.

(6) Podemos lembrar de Bartolomeu de las Casas ( o protetor dos índios) e dos mártires da América Latina que conscientes da necessidade de "fazer acontecer” o Reino, doaram suas vidas através dos mais diversos modos.

(7) Para maior aprofundamento vide a reflexão feita em: BOFF, Leonardo. Eclesiogênese: a reinvenção da Igreja. Record, 2008.



[Este trabalho foi orientado pelo Prof. Dr. Francisco de Aquino Junior].


João Leondenes Facundo de Souza Junior


Fonte: http://www.adital.com.br/

TdL em Mutirão 34

GÊNESE, CRISE E DESAFIOS DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO


I. A gênese


A Teologia da Libertação (TdL) nasce na América Latina e Caribe num contexto histórico bem definido. Três ordens de fatores marcam e explicam sua gênese e seu desenvolvimento. Primeiramente, numa perspectiva sócio-econômica e política, grande parte dos países latino-americanos e caribenhos, sofria sob o peso da ditadura militar. Acrescida da dependência econômica em relação ao Primeiro Mundo, os regimes de exceção contribuem poderosamente para agravar as desigualdades sociais que se verificam no interior dos países periféricos do Terceiro Mundo, bem com entre estes e os países centrais. Nesse estado de coisas, opressão política e dívidas sociais crescentes constituíam duas faces da mesma moeda. As nações subdesenvolvidas, embora formalmente independentes, na verdade viviam sob a égide de uma nova colonização, ou melhor, jamais haviam saído dela.
Em segundo lugar, desde uma perspectiva científica, o instrumental de análise social marxista jogava luz sobre essa realidade de domínio político e econômico. Na medida em que disseca a partir de suas entranhas o funcionamento da acumulação capitalista, a teoria marxista põe a nu as contradições do liberalismo econômico. Basta uma olhada rápida às obras de Gustavo Gutierrez, Juan Luis Segundo, Clodovis e Leonardo Boff, Jon Sobrino, Hugo Asmann, Ellacuría – entre tantos outros – para dar-se conta de que, em termos de análise social, implícita ou explicitamente, elas se guiam pela matriz teórica do marxismo. Convém não esquecer, porém, que os autores da TdL recorrem a essa matriz teórica muito mais para entender a gênese da opressão social, do que na busca de um projeto social alternativo. Neste caso, a orientação e a luz partem antes da Palavra de Deus.
A terceira ordem de fatores que ajuda a entender o surgimento da TdL está vinculada ao campo eclesial. Cinco aspectos desta inflexão eclesial devem ser destacados. Primeiro, a experiência da Ação Social Católica nos anos 50 e 60, especialmente entre a classe operária francesa. A difusão do método VER-JULGAR-AGIR mergulha aí suas raízes, ajudando a entender os problemas sociais através de uma pedagogia crítica, por um lado, e de uma prática transformadora, por outro.
Depois, temos a realização do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965), como tentativa bem sucedida de a Igreja entrar em diálogo aberto com o mundo moderno. Tratava-se, em poucas palavras, de afinar o compasso com as descobertas da ciência e com o progresso tecnológico. A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, sobre a Igreja no Mundo de Hoje, traça um retrato da realidade, em suas “mudanças rápidas e profundas”, que ainda hoje mantém grande atualidade.
O terceiro aspecto refere-se à II Conferência dos Bispos da América Latina e Caribe, realizada na cidade de Medellín, Colômbia, no ano de 1968. Estamos em plena vigência das ditaduras militares. O tema – La Iglesia en la actual transformación de la América Latina, a la luz del Concilio Vaticano II – retrata um contexto de grande efervescência social e política. Os bispos cunham a expressão “violência institucionalizada” para sublinhar que “um surdo clamor brota de milhões de homens, como injustiça que clama aos céus”. Falam também da “vigência de estruturas inadequadas e injustas” que pesam duramente sobre os povos do continente.
O aspecto de número quatro representa a prática libertadora das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) em vários países da América Latina e do Caribe. Inspiradas no método Ação Católica, por uma parte, e por outra, estimuladas pelas conclusões do Vaticano II e do Documento de Medellín, as comunidades cristãs passam a uma militância ativa pela transformação das estruturas sociais injustas. A leitura da realidade à luz da Palavra de Deus e a busca de soluções concretas para os problemas reais definem sua prática religiosa frente à dominação política e à pobreza econômica. Esse “novo jeito de ser igreja” realiza entre a fé e o compromisso social um casamento indissociável e rico em conseqüências. Vale sublinhar que essa “opção preferencial pelos pobres” tem na hierarquia amplo respaldo.
E chegamos assim ao quinto e último aspecto a ser lembrado: um discurso social fortemente combativo, acompanhado de uma prática conseqüente, seja por parte de algumas conferências episcopais latino-americanas e caribenhas, seja por parte de alguns bispos isolados. No caso das conferências, o destaque vai para o Brasil, onde o enfrentamento à ditadura militar produziu documentos de uma veemência profética surpreendente. Quanto aos pastores mais engajados, vale apontar os nomes de Dom Hélder Câmara, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Paulo Evaristo Arns, Dom Oscar Romero – para só citar alguns.
As três ordens de fatores e os cinco aspectos eclesiais, combinados entre si, estão na raiz da Teologia da Libertação. Esta nasce e se desenvolve como uma reflexão crítica a partir da práxis libertadora dos cristãos. Ou seja, num primeiro momento desenrola-se em inúmeros grupos, movimentos e pastorais sociais a luta pela libertação; só depois, num segundo momento, é que se desenvolve a reflexão teórica. Esta, no decorrer do tempo torna-se simultaneamente causa e efeito de novas lutas e novas sínteses reflexivas. Instala-se o que Juan Luis Segundo irá chamar de círculo hermenêutico: a consciência sobre a realidade opressiva leva a uma prática libertadora, a qual alimenta uma reflexão teórica que, por sua vez, retroage sobre a realidade, renovando e aprofundando a ação social e política.
Esse esquema de dupla face – práxis transformadora e reflexão teórica – ganhou impulso sob as botas dos militares. Não é à toa que a perseguição política e o martírio acompanharam de perto essa nova forma de viver a fé cristã. Militantes de base, agentes pastorais e teólogos, às dezenas e centenas, sofreram no corpo e na alma o peso e o impacto da ação repressiva.

 
II. A crise

 
No final dos anos 70 e início dos 80, os regimes de exceção começam a dar lugar a um processo democrático lento e gradual. Este terá uma trajetória desigual e conturbada, de acordo com o contexto específico de cada país. À medida que esse processo se afirma, as CEBs e a TdL tendem a ofuscarem sua perspectiva crítica e a diminuir sua combatividade social e política. Tanto fora como dentro da Igreja, ambas perdem força de incidência. No caso particular do Brasil, há um agravante. Se, por um lado, é verdade que CEBs e TdL constituem um dos igarapés que engrossaram o rio caudaloso do Partido dos Trabalhadores e da eleição do governo Lula, por outro também é certo que seus integrantes sofrem grande perplexidade diante da aliança desse governo com setores historicamente retrógrados da sociedade brasileira.
Essa crise, aliás, ultrapassa de muito os limites da Igreja. Ela irá marcar de uma forma generalizada todas as organizações sociais de esquerda, a partir da segunda metade dos anos 80, retornando com mais ênfase diante da timidez do governo Lula em enfrentar as mudanças estruturais. Mudanças que, não custa lembrar, constituíam as principais bandeiras de tais organizações.
É neste contexto de crise que vêem à tona algumas lacunas da prática das CEBs e da reflexão teórica da TdL que, a bem da verdade, já se encontravam em germe desde a sua origem. Latentes na gênese, aparecem agora à plena luz do dia. Entre elas, gostaria de apontar as cinco principais: matriz teórica insuficiente, conceito redutivo de liberdade, dificuldade de incorporar o discurso do meio ambiente, problemas de linguagem, temas transversais. Vejamos uma por uma.
1. Como já vimos anteriormente, a análise da realidade com que operam os representantes das CEBs e da TdL tem como base a matriz teórica do instrumental marxista. Esta matriz, como é notório, prima pela análise social, econômica e política da sociedade. Aliás, desde os primórdios da economia capitalista, tanto a direita quanto a esquerda irão desenvolver uma teoria marcadamente economicista, tendo como pano de fundo a racionalidade aplicada do iluminismo. Tanto Adam Schmidt e Ricardo, por uma parte, como Marx e Engels, por outra, trabalham com os dados da produção, comercialização e consumo.
Importada para a América Latina, essa matriz se revela insuficiente e às vezes até inadequada para explicar o “caldeirão” cultural em que se transformou o continente latino-americano e caribenho. Ela não dá conta de captar toda a riqueza e a mestiçagem profunda das três raças que lhe deram origem. Tende a desconhecer, entre outras coisas, a inegável contribuição negra e indígena para a formação cultural de nossos povos.
Essa lacuna necessita ser preenchida com novos dados da história do continente. Não que se deva jogar pela janela o instrumental de análise marxista. Ele nos ajudou e continua nos ajudando a compreender as estruturas sociais de concentração, pobreza e exclusão social. Mas, a essa matriz teórica, temos de incorporar novas informações, sobretudo de caráter antropológico, religioso, psicológico, etc. A dimensão econômica, política e social não conseguem explicar tudo. Há outras dimensões do ser humano que devem ser contempladas. Aliás, a experiência prática ensina que não basta resolver os problemas de ordem social para criar uma sociedade alternativa. Há questões de outra natureza e de maior profundidade que devem ser levadas em conta, se quisermos entender a alma dos povos latino-americanos.
2. O conceito de liberdade que se encontra na visão das CEBs e da TdL, como aliás de outros setores da esquerda latino-americana, muitas vezes se reduz â noção de libertação. Isto se explica, em parte, pelo fato de terem se desenvolvido debaixo da repressão militar. Era urgente liberar-se das correntes, da pobreza, do machismo, etc. Não é sem razão que se buscava no Livro do Êxodo um cimento religioso e ideológico para o combate à opressão. Ocorre que a noção de libertação constitui apenas um lado do conceito mais amplo de liberdade, a liberdade de. Este tem que ser complementado com o outro lado, isto é, a liberdade para. E é justamente aqui que as coisas se complicam.
Voltando ao caso do povo hebreu na experiência do Egito, quando se tratou de dar um conteúdo programático à liberdade conquistada, já na travessia do deserto, bateu-lhes a saudade do Egito. Ali, embora submetidos ao Faraó, tinham “as panelas cheias e não passavam fome”. Ou seja, preferem a escravidão à liberdade, desde que não falte o que comer. A liberdade, quando exige trabalho e responsabilidade, converte-se num fardo pesado. No caso dos romanos, como bem sabemos, a escravidão era compensada com “pão e circo”.
Aqui há lições a serem aprendidas. A noção restritiva de liberdade, herança da época dos militares, torna muitas vezes imaturas algumas práticas de esquerda. Somos peritos em atirar pedras sobre o telhado de vidro das oligarquias históricas, e vemos fazê-lo, sem dúvida. Mas quando se trata de elaborar um plano de ação, um programa de governo ou um projeto de sociedade, as idéias se embaralham. O vigor teórico, tão vigoroso na crítica, perde força e alcance quando se trata de construir uma via alternativa.
3. O discurso ecológico, felizmente, vem ganhando espaço nos movimentos sociais e organizações de esquerda. Mas em muitos casos, ainda aparece como um tema “transversal”, o que, não raro, é sinônimo de secundário. É preciso reconhecer que houve avanços em relação a algumas décadas atrás, quando a preocupação com o meio ambiente era considerada “coisa de quem não tem o que fazer” ou dos “ambientalistas europeus”. Mas há muito caminho a ser feito.
Hoje cresce a consciência de que ou protegemos as diversas formas de vida do planeta, ou perecemos junto com ele. Nas análises do modelo neoliberal, cada vez mais entram a fazer parte itens como a devastação do meio ambiente, o uso indiscriminado dos recursos naturais, o aquecimento global, a contaminação das águas e do ar, o desenvolvimento ecológica e socialmente sustentável, e outros temas correlatos. O modelo econômico não é apenas concentrador e excludente, é também predatório em relação à biodiversidade. Diante dos alertas cada vez mais alarmantes dos cientistas, dos movimentos ambientalistas e das organizações não governamentais, o prefixo “bio-vida” passa a fazer parte de qualquer estudo sobre a realidade.

Cabe aqui um olhar ao Livro do Gênesis, em que se narra que Deus criou a terra e todas as coisas como “nossa casa” e “viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Mais tarde, Deus estabelece uma aliança com seu povo, simbolizada pelo arco-íris. Vale sublinhar que a aliança não leva em conta apenas os homens e mulheres, mas, como diz textualmente a narração, “com todos os seres vivos” e “com todas as gerações futuras”. E o texto insiste: “com tudo o que vive sobre a face da terra”. Ou seja, o Deus Criador preocupa-se com a vida em todas as suas formas, por um lado, e, por outro, com a preservação da vida para as gerações vindouras (Gn 9,12-17).
4. Na prática das CEBs e das Pastorais Sociais, como também no estudo da TdL, a linguagem tornou-se um desafio cada vez mais premente. Entre o universo popular e o universo do agente intermediário, não raro se abre um abismo quase intransponível. Enquanto o primeiro se revela rico em imagens, “causos”, histórias, mímica e uma rica coreografia de gestos, o segundo prima pela lógica acadêmica da racionalidade científica. Um fala predominantemente com o corpo e com o coração, outro com a cabeça. Não que isso seja problemático em princípio. Ambas as formas de linguagem e de comunicação são legítimas e necessárias. O problema é que muitas vezes uma não entende nem é entendida pela outra. Caminham em linhas paralelas. É como se um lado estivesse sintonizado em AM e outro em FM.
O desafio é estabelecer pontes entre os dois universos. Isso requer capacidade de escuta e compreensão, particularmente por parte dos agentes de pastoral e dos estudiosos da teologia. Requer uma aguda penetração no mundo cultural e na alma da população, reconhecimento e valorização de seus valores, coisa de que nem sempre somos capazes. É necessário dar-se conta que os ouvidos da universidade e os ouvidos das ruas são distintos e exigem formas apropriadas de comunicação. Enquanto na rua funciona mais o canto, a música, a dança e a poesia, na sala de aula é a análise racional que prevalece. Confundir estes dois ambientes é bloquear a comunicação.
Também não resolve simplesmente passar a palavra ou o microfone ao povo. Isso pode gerar situações altamente constrangedoras para ambas as partes. Se é verdade que a palavra não deve ser monopólio dos entendidos, também é verdade que existem outras formas de se comunicar. A linguagem verbalizada é apenas uma parte, e bem reduzida, do processo integral da linguagem. O que é necessário é abris espaços para novas formas de linguagem, nas quais os representantes do povo se sintam “mais à vontade e mais em casa”.
5. Já vimos como o meio ambiente é tratado às vezes como “tema transversal”. Também vimos que isso é uma forma de reduzi-lo a um plano secundário. O mesmo se constata com outros temas, mais relegados ainda à condição ambígua de “transversais”. Sublinhemos apenas quatro: gênero, raça, opção sexual e democracia na Igreja. Todos eles, em geral, comparecem em nossas preocupações iniciais, reaparecem nas propostas finais de nossas assembléias e encontros, mas dificilmente chegam a figurar no primeiro plano das pautas aprovadas. Numa palavra, apenas tangenciam os temas de fundo.
Daí a dificuldade de compaginar um discurso libertador, na arena política, com uma prática autoritária, no âmbito individual ou familiar. Daí também a persistência em nossa práxis de alguns vírus, como autoritarismo, centralismo, corporativismo, personalismo, e outros “ismos” igualmente nocivos. Daí, ainda, a falta de companheirismo entre homens e mulheres, no interior de nossas atividades, como também de verdadeira democratização das decisões. Daí, enfim, o grande estranhamento que manifestamos, implícita ou explicitamente, diante de algumas minorias marcadas por diferentes opções sexuais.
E nem precisaria acrescentar a persistência de um racismo dissimulado ou declarado, mesmo entre aqueles que propugnam por uma sociedade nova. Apesar de todo nosso conhecimento das raízes históricas latino-americanas e da escravidão negra, ou justamente por causa disso, muitas vezes nossa prática consciente ou inconsciente aviva o estigma da marginalização na pele do povo negro. Deliberadamente ou não, fazemos sangrar feridas que em vão tentam cicatrizar.
Quanto ao tema da democracia no interior da Igreja, basta lembrar a presença desproporcionada da mulher na base e no topo da pirâmide. Enquanto nas comunidades eclesiais e grupos de base elas representam a maioria absoluta, às vezes carregando sobre os ombros todo peso da responsabilidade, à medida que se sobe nas instâncias decisórias, elas vão se tornando cada vez mais raras, até desaparecer por completo no corpo da hierarquia.



III. Os desafios



A análise da gênese e da crise da Teologia da Libertação, ao fazer emergir as lacunas que estavam ocultas, trazem novos desafios. Diante deles, há posturas diversas, algumas claramente contrastantes. Enquanto uns simplesmente abandonam a TdL e outros se radicalizam ainda mais em seu estudo, uma boa parte procura evitar esses dois extremos, tratando de redefinir seus conteúdos e métodos. Creio que neste caso a “terceira via” seja a mais indicada.
De fato, abandonar a TdL hoje é desconhecer a necessidade de prosseguir no combate à exploração exacerbada do ser humano, da biodiversidade e da natureza em seu conjunto. As vítimas do neoliberalismo e da economia globalizada, hoje, não são menos numerosas nem menos sacrificadas do que, ontem, as vítimas dos regimes de exceção. Qualquer tipo de ditadura, seja militar ou do mercado, deve ser combatida por quem se diz cristão. Não podemos esquecer que antes da “teologia” vem a “libertação”. Importa mais esta do que aquela. Mas tampouco podemos esquecer que uma reflexão teórica e sistemática sobre a práxis libertadora, em última instância, ilumina, orienta e fortalece a própria práxis.
Por outro lado, persistir num radicalismo gratuito é desconhecer que o contexto histórico dos regimes democráticos, ainda que se trate de democracia formais e cheias de contradições, é diferente dos regimes de exceção. Novas perguntas emergem e exigem respostas igualmente novas. Embora o conteúdo de fundo e o método de interpretação hermenêutica sigam inalteráveis, mudam muitos conteúdos de caráter circunstancial e muda a pedagogia da organização social. Os debates da TdL, sob pena de se tornarem anacrônicos, devem acompanhar as mudanças do tempo.
Mas um dos maiores desafios que hoje se coloca à TdL é, sem dúvida, o pluralismo cultural e religioso, como uma das principais características da chamada pós-modernidade. Da mesma forma com que foram banidos na aurora do mundo moderno, os deuses retornam com a força de águas represadas. No contexto de uma mentalidade cada vez mais urbanizada, não só do ponto de vista geográfico, mas em termos culturais, os deuses proliferam por todos os cantos. Estão nas ruas, nos centros comerciais, nos meios de comunicação, na mídia... É verdade que muitos deles se revelam divindades estranhas, pairando nas nuvens, alheias e indiferentes à dores e esperanças humanas. Outros primam pelo individualismo, pelo intimismo privativo ou pela prática da magia. Mas nem por isso merecem menos atenção.
Diante de tal profusão de deuses, qual o rosto do Deus verdadeiro? Como o apóstolo Paulo em Atenas, Grécia, somos novamente confrontados nos areópagos de hoje com o Deus desconhecido. Ou seja, o Deus verdadeiro é sempre desconhecido. Os deuses demasiadamente conhecidos são deuses de fácil manipulação. Aliás, deuses no plural faz lembrar idolatria. O verdadeiro Deus revela e oculta sua face, interpelando permanentemente nossas práticas e crenças, e exigindo que o busquemos junto ao empobrecido.
No testemunho radical da cruz, Jesus descobre o rosto de Deus ao descer ao “inferno do sofrimento humano”, por um lado, e, por outro, ao partilhar das alegrias e sonhos da população mais pobre, indefesa e excluída. Mais do que nunca, a TdL e as CEBs precisam orientar os cristãos deste continente crucificado a renovar a “opção preferencial pelos pobres”. Aliás, o Documento Final da V Conferencia dos Bispos da América Latina e do Caribe é enfático a esse respeito. Mantemos suas palavras no original, em espanhol: “Nos comprometemos a trabajar para que nuestra Iglesia Latinoamericana y Caribeña siga siendo, con mayor ahínco, compañera de camino de nuestros hermanos más pobres, incluso hasta el martirio. Hoy queremos ratificar y potenciar la opción del amor preferencial por los pobres hecha en las Conferencias anteriores. Que sea preferencial implica que debe atravesar todas nuestras estructuras y prioridades pastorales. La Iglesia latinoamericana está llamada a ser sacramento de amor, solidaridad y justicia entre nuestros pueblos” (nº 410).

Pe. Alfredo J. Gonçalves


Fonte: http://www.adital.com.br/