segunda-feira, 19 de setembro de 2011

TdL em Mutirão 29

REPORTAGEM ESPECIAL: A IGREJA DA LIBERTAÇÃO!
ENTREVISTA COM GUSTAVO GUTIÉRREZ

 
Em entrevista exclusiva a Adital o Pe. Gustavo Gutiérrez, um dos maiores representantes da Teologia da Libertação, fala sobre a Igreja da Libertação e aborda suas motivações profundas, as perspectivas e a reflexão da sua prática sistematizada pela Teologia da Libertação. Refere-se, também, às responsabilidades do trabalho teológico atual em relação às soluções exigidas pelos problemas mundiais graves, tais como a fome e as guerras autoritárias, ao desafio da diversidade cultural latino-americana e ao protagonismo dos diferentes setores populares, abrangidos pela prática pastoral profética. Por último, partilha suas atuais preocupações teológicas, sua opinião sobre os recentes processos políticos democratizadores na América Latina e sua inserção à família dominicana, de onde, atualmente, seu trabalho teológico.

A entrevista é apresentada no final da série de Reportagens sobre a Igreja da Libertação nos países andinos -Bolívia, Equador, Colômbia, Venezuela y Peru, publicada por ADITAL, de 26 de Março a 23 de Abril-, indicando as perspectivas que a Igreja da Libertação na América Latina oferece.

 
ADITAL - Os teólogos da libertação sistematizaram uma vivência que foi nascendo no meio popular da igreja. Você foi o primeiro a reconhecer e a escrever sobre a nova ação do Espírito na América Latina. Você recorda um fato concreto ou o momento em que sua atenção se voltou para as novidades que estavam nascendo dentro da igreja?

 
Gustavo Gutiérrez - É difícil falar de um fato singular. Trata-se da confluência de dois processos históricos.

Por um lado, através de pequenos passos que se foram acelerando com o passar dos anos, assistimos, nas décadas de 1950 e 1960, a uma nova presença dos pobres do continente na cena social e política. Os que haviam estado, de certo modo, "ausentes" de nossa história (fisicamente sempre haviam estado aí, mas estavam invisibilizados), começaram a fazer-se presentes. Chegavam, como dizia Bartolomé de las Casas sobre os índios, no século XVI, "com sua pobreza nas costas".

Por outro lado, com esta irrupção histórica do pobre, que não estava - e que não está - a não ser em seus primeiros momentos, converge outro processo que se desenvolve dentro da igreja católica: o Concílio Vaticano II. O Concílio insistiu na intuição de João XXIII: estar atento aos signos dos tempos; abrindo, dessa forma, novas pistas para a vida cristã e para o anúncio do evangelho. Nessa linha, o Papa João falou, pouco antes do início do Concílio, da igreja dos pobres, encarregando-se da nova consciência que se tinha dessa condição desumana a que chamamos pobreza.

Esses dois processos, cujo alcance percebemos lentamente, levaram muitos cristãos, dos meios populares e de outros ambientes sociais a comprometer-se com os pobres e contra a pobreza, como uma exigência de sua fé, se aprofunda a pastoral em meios pobres, as comunidades cristãs nesses âmbitos são afiançadas, buscando pensar sua fé desde essa experiência. A Teologia da Libertação busca refletir sobre essa prática à luz da mensagem cristã. Se tivéssemos que buscar um fato, como ponto de partida, seria a prática que mencionamos.

 
ADITAL - Qual é a motivação profunda dessa vivência teológico-pastoral que continua inspirando a tanta gente, apesar do modelo de igreja e de sociedade vigentes?

 
Gustavo Gutiérrez - Tenho a impressão que isto se deve a vários fatores. A um estreito contato com a realidade e com as mudanças inevitáveis que nela acontecem. É uma reflexão sobre a fé que não pretende colocar-se em um ângulo morto da história para vê-la passar, colocando-se em uma neutralidade cômoda diante dos acontecimentos que golpeiam as pessoas. Mas, busca - com todas suas limitações e com o que ainda tem que fazer -, como o Verbo de Deus, segundo o evangelho de João, colocar sua tenda dentro da história, da vida cotidiana.

Um segundo elemento: isso significa que é uma teologia fortemente marcada pela leitura da Bíblia, que nos revela um Deus da vida que rejeita a situação de morte prematura e injusta, significação última da pobreza. Morte física, prematura e injusta, é o que vemos, claramente, no mundo de hoje; morte cultural, também, na medida em que se discrimina a alguém por razões culturais, raciais ou por sua condição feminina. Tudo isso é a pobreza na Bíblia e, por isso, apresenta-se desse modo, desde o início, na Teologia da Libertação. Nessa perspectiva, apesar da dimensão econômica ser muito importante, é apenas uma das dimensões. É importante perceber a complexidade, ou, como dizem os economistas, a multidimensionalidade da pobreza.

Outros fatores contam muito: as opções feitas pela igreja latino-americana em Medellín, Puebla e Santo Domingo e também o testemunho - inclusive entregando sua própria vida - de numerosos cristãos, em seu esforço por reconhecer o rosto de Cristo no rosto dos maltratados e oprimidos.

 
ADITAL - Que seria mais urgente para que a Teologia e a Prática Pastoral da Libertação ajudem o mundo a encontrar soluções para problemas, tais como a fome, a guerra, o autoritarismo armado, etc.?

 
Gustavo Gutiérrez - Denunciar tudo o que atenta contra a dignidade da pessoa, especialmente, daqueles que sofrem, sistematicamente, situações de injustiça. O amor ao próximo é inseparável do amor de Deus.

Os problemas que vocês mencionam na pergunta são fatos históricos complexos, com aspectos que se movem em campos nos quais a reflexão teológica não tem uma competência especial. Porém, tem uma contribuição a dar. Ela pode fazer com que cresça o respeito pelos direitos humanos, bem como o rechaço que a sua violação (como a causada pela fome, pela guerra, pela tirania) deve provocar em uma pessoa que crer e em toda pessoa. Não se deve esquecer que a religião, o cristianismo inclusive, tem sido utilizada e continua sendo, para justificar essas situações. Estamos presenciando isso por ocasião da invasão do Iraque, uma guerra - com todos os sofrimentos que acarreta e com as conseqüências que poderão durar por anos - sem nenhuma justificativa, como anunciou, energicamente, o Papa João Paulo II.

Muitas vezes se pensa, e, em muitos casos, esta idéia tem-se arraigado em alguns setores populares, que a pobreza é algo assim como um fato natural, quase uma fatalidade. Um destino e não, como realmente é, uma condição criada por mãos humanas e, portanto, suscetível de ser mudada. Não há solução aos problemas mencionados, e a tantos outros semelhantes, se, juntamente com as imprescindíveis medidas de ordem social, político e legal, não mudarem a mentalidade para poder criar os caminhos que enfrentem as situações desumanas. A quantidade de cristãos que foram assassinados ou passaram por outras formas de maltrato e exclusão na América Latina, por serem solidários e por dar testemunho, prova que não falamos de abstrações.

 
ADITAL - A nova visão teológica que nasceu na América Latina poderia ser, também, um denominador comum para contribuir à unidade entre as culturas de nosso continente?

 
Gustavo Gutiérrez - Não sei se a expressão correta seria dizer que ela pode ser um denominador comum. Porém, o certo é que a grande maioria da população da América Latina vive em uma condição de marginalidade e insignificância social, ocasionada por causas distintas. É importante estar atento a essa diversidade e a não reduzir a situação de conjunto a apenas um dos motivos que a produzem; além disso, em muitos casos, as causas se acumulam nas mesmas pessoas.

É legítimo e enriquecedor acentuar uma dimensão que consideramos pouco valorizada, porém seria grave que se fizesse em detrimento de outros aspectos da situação de insignificância, com o risco de criar uma oposição, no fundo absurda, entre os que partilham uma condição de pobreza e marginalização. Este é o ponto chave na perspectiva da Teologia da Libertação.

 
ADITAL - A partir da Teologia da Libertação nasceram outras teologias, tais como: a Teologia Afro, Índia, da Mulher, favorecendo a inculturação. Como a reflexão teológica pode contribuir para fortalecer a articulação destes diferentes setores da sociedade?

 
Gustavo Gutiérrez - Creio que esse é um dos fatos mais importantes na reflexão teológica que se faz entre nós. Essas teologias são uma expressão do processo em curso que denominamos de irrupção do pobre. O aprofundamento das diversas vertentes da situação de marginalização e de exclusão permite vislumbrar a crueldade das situações em que vivem tantos habitantes deste continente, e, ao mesmo tempo, reforça a percepção de que a pobreza não é unicamente carência; os pobres são seres humanos com valores humanos e culturais e podem contribuir muito no processo de libertação, para uma convivência social humana e justa e à inteligência da fé.

As diferentes linhas teológicas mencionadas na pergunta sublinham uma diversidade enriquecedora para todos; elas estão em pleno processo, realizando um trabalho sumamente valioso e tem muito pela frente. Parece-me que sim, a Teologia pode exercer um papel na articulação que se alude; porém essa articulação requer uma boa análise social e histórica que permita ver, em toda sua crueza, os desafios comuns que enfrentamos.

 
ADITAL - Quais são os temas que a realidade latino-americana coloca ao fazer teológico, hoje? Quais dentre estes temas você está trabalhando prioritariamente?

 
Gustavo Gutiérrez - Quiçá, o primeiro que convém dizer é que a pobreza, com a complexidade que se falou, não é somente um problema social, o que é importante para os que sentem uma vocação especial neste campo. Trata-se de uma questão humana que se constitui em uma interpelação à consciência cristã, por isso é um desafio à reflexão teológica.

A Teologia está a serviço da vida cristã, do seguimento de Jesus, que chamamos espiritualidade, e a serviço da tarefa eclesial do anúncio do evangelho. Esta é sua razão de ser, é uma re-flexão que vem depois da prática do cristão, com vistas a contribuir à sua fidelidade ao testemunho e ao ensinamento de Jesus, que nos faz caminhar por duas grandes vias, sem as quais não há vida cristã autêntica: a contemplativa ou mística e a profética ou do compromisso na história. A Teologia da Libertação vem de uma pergunta: como dizer ao pobre - e a toda pessoa - que Deus o ama, quando suas condições de vida parecem contradizer esse amor que a Bíblia considera, inclusive, dirigido a eles, em primeiro lugar.

Atualmente, estou tentando retomar os fundamentos bíblicos da opção preferencial pelo pobre - que constitui o centro mesmo da Teologia da Libertação - para considerar o que esta perspectiva tem a dizer diante dos desafios que se apresentam hoje, como a globalização, por exemplo. Se nos inspiramos em um texto do Antigo Testamento, penso que é importante perguntar-se por onde dormirão os pobres no século que acaba de começar. A Teologia é uma hermenêutica, uma interpretação da esperança, dos motivos que temos para esperar. Por isso está estreitamente ligada a como viver hoje a mensagem de Jesus.

 
ADITAL - Qual sua apreciação sobre os processos político-sociais que culminaram nos resultados eleitorais do Brasil, da Bolívia e do Equador?

 
Gustavo Gutiérrez - Bem, há variações grandes entre esses três processos. O caso do Brasil é particularmente significativo. É interessante, sem dúvida, que, de uma maneira ou de outra, a voz dos marginalizados se faça ouvir. Porém, sabemos da instabilidade dos processos políticos, das pressões internacionais e de outros obstáculos que se encontram no caminho das mudanças sociais importantes. Não faço estas observações em tom pessimista, mas para que se pense que é necessário estar vigilantes e não esquecer que são requeridas mudanças mais profundas as quais, apesar de vinculadas a processos políticos, os ultrapassam.

 
ADITAL - Qual o significado de sua inserção na família dominicana e qual a repercussão dessa decisão em seu trabalho teológico?

 
Gustavo Gutiérrez - É o resultado de um processo muito longo, de muitos contatos pessoais e de diferentes situações. Alguns aspectos foram importantes, tais como a afinidade ao modo de fazer Teologia, ligada à predicação e à espiritualidade, que aprendi com os mestres dominicanos Chenu, Congar, Schillebeeckx e outros; e de um outro aspecto, distante no tempo, mas, próximo, por outras razões, Bartolomé de Las Casas. Espero, nesta nova situação, ter um marco importante para trabalhar a linha teológica que acabo de recordar. Aprecio e agradeço a maneira fraterna com que fui acolhido.

 
[Reportagem publicada originalmente em 25/04/2003].





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