sexta-feira, 23 de setembro de 2011

TdL em Mutirão 30

DESAFIOS ATUAIS PARA A ESPIRITUALIDADE DA LIBERTAÇÃO


Introdução:
Dois motivos me levam a refletir sobre este tema.

 
Quando no começo da década de 90 alguns mais perspicazes mencionaram pela primeira vez a necessidade de uma “mudança de paradigma”- uma expressão que escutamos então pela primeira vez e que “vinha para ficar” -, pareceu que alguns dos que levantavam esta bandeira, o faziam para justificar seu abandono do compromisso com os pobres, a quem, naquela hora muitos, militantes “socialistas” e “revolucionários” até então, começavam a deixar sozinhos, sem protagonismo nem futuro. Entendendo que se tratava de dissimular um abandono – e creio que, na verdade, em muitos casos assim era – houve outros que recusamos aquela pretendida mudança de paradigma para nos manter fiéis aos compromissos fundamentais de nossa espiritualidade da libertação (E.L), cuja opção evangélica pelos pobres não nos permitia abandonar um paradigma como quem muda simplesmente de camisa para se acomodar a uma nova situação.
Já se passou tempo suficiente desde então para que já se tenha como fato indiscutível e evidente a mudança profunda que se produziu, por uma parte, e para que, por outra, possamos avaliar isso que mudou e colocar nome concreto para os novos desafios com os quais a E.L. vai medir-se agora.
Um segundo motivo. Nestes tempos de crise e -por que não dizer- de abandonos e retratações, não poucos militantes se afastaram da teologia da libertação (TL) e da EL. Com freqüência pensamos que se tratava de verdadeiros pecados de infidelidade ao evangelho e à Causa dos pobres e em certos casos o foi realmente. Mas também é verdade -isso aparece agora com mais clareza– que, de algum modo, a situação ambiente se configurou como “exatamente contra” ao que a EL tem de mais próprio e substancial. Diríamos que o momento cultural atual é estruturalmente contraditório com a própria EL. Em muitos aspectos, professar hoje a EL é ir diretamente na contra corrente da plausibilidade social vigente. Muitos dos que a abandonaram simplesmente “não puderam fazer outra coisa”, honradamente não viram outra saída. (excetuando-se enunciados mais heróicos não se crê no que se quer, mas no que se pode...).
Pois bem, numa situação tão radical, não basta querer superar o problema com simples boa vontade, mas é conveniente medir bem a magnitude do problema e detectar a identidade exata de cada um de seus componentes, para estar capacitado a dar uma resposta “digerida” conscientemente, em vez de se empenhar em uma fidelidade cega e obstinada que não saiba “dar razão de sua esperança”. Ter bem assinaladas as características do problema já é parte da solução.
É isso que me proponho neste estudo: colocar nome concreto para os problemas, elencá-los e trazê-los à luz. Não pretendo resolvê-los nem dar-lhes resposta –se isso fosse possível– neste momento. Interessa-nos somente analisar de um modo particularizado como e em quais campos este contexto atual desafia (dificulta, julga, inviabiliza) a Espiritualidade da Libertação.
Faz-se difícil encontrar uma classificação “clara e distinta” dos fatores da crise, pois todos eles têm aspectos múltiplos mutuamente interligados e pertencem simultaneamente a níveis diversos. Por isso vamos abordá-los simplesmente de um modo sucessivo, sem marcar demais suas delimitações, prioridades ou mútuas relações.

 
1. Dificuldades provenientes da cultura ideológico- política atual.

 
Um primeiro bloco de dificuldades para com a EL é o fato de que, como disse José Maria Mardones, com frase lapidária, “a caída do Muro de Berlim indica o fim de uma política entendida como promessa de libertação; o fim da visão teológica da política; nós nos encontramos diante do fim do messianismo político e religioso”. (Neoliberalismo y religión, Verbo Divino, Estella, 1998, p. 45).
Ainda que o que “fracassou” com o Muro de Berlim não tenha sido nada mais que o experimento bolchevique, um a mais na grande história de tentativas para construir uma sociedade mais fraterna, o caso é que a atmosfera utópica e messiânica, em que todas aquelas tentativas militantes e esperançadas se desenvolveram, desapareceu em muitos setores e na sociedade como conjunto cultural. Já não é possível, para muitos, pensar o mundo em coordenadas de transformação histórica e libertação. A consciência de fracasso das tentativas revolucionárias realizadas nos últimos tempos calaram profundamente no subconsciente coletivo da sociedade. Perdeu-se a “inocência idealista”, e a sociedade ficou vacinada contra toda proposição utópico- messiânico; o cidadão moderno atual neoliberal se “ruboriza” diante da presença de um utopia messiânico- escatológica, ou sorri benevolamente. Fez-se céptico, pragmático, incrédulo diante das utopias, voltado ao aqui e agora, sem qualquer concessão para devaneios messiânicos.
O “pensamento único” dominante inculca a inviabilidade de toda mudança, a impossibilidade de encontrar uma alternativa, o convencimento de estar “no melhor dos mundos possíveis” no “final da história”, com a conseguinte desesperança por parte dos outrora militantes da transformação social e da libertação dos pobres.
Um dos eixos centrais da EL –como a estrutura central sobre a qual se constrói– é precisamente a leitura que faz da realidade em termos de história, de utopia e de praxe para realizá-la. A EL é um espírito que chama a pessoa para se auto realizar como sujeito, mediante o compromisso na praxe de transformação histórica de libertação, que quer se inspirar no projeto mesmo de Deus, manifestado na Causa de Jesus, assumida e feita Causa nossa. Isso, evidentemente, choca frontalmente com as dificuldades ideológico-políticas que esta sociedade atual tem com relação ao pensamento e à praxe utópica. É o próprio esquema mental da EL que é contrário à crise da cultura atual.

 
2. O pós modernismo.
Simultaneamente e, vindo sem dúvida de mais longe, ainda que reforçado também por esses fracassos históricos, tanto das tentativas socialistas e revolucionárias como dos mesmos processos revolucionários, difundiu-se amplamente um novo fator, o pós modernismo, com forte componente de reação decepcionada com o pensamento modernizante, com o qual também se considera que fracassou, não somente porque não trouxe o que suas promessas tanto tempo anunciaram, como também porque trouxe a frustração decepcionante, a desigualdade crescente, a depredação da natureza e uma forma de civilização estressante e violenta.
O pós modernismo está “de volta” das grandes visões de conjunto, dos grandes projetos históricos, das utopias e das grandes metas. Não crê neles. Recusa os “grandes relatos”. Refugia-se no fragmento: viver o momento presente (carpe diem), renunciando a grandes ideais e projetos históricos, resignando-se a um “pensamento débil” posto que não crê que seja possível outra coisa. A pós modernidade questiona e ridiculariza a militância, acreditando que ela é não só inviável e sem objetivo no atual contexto histórico, mas também ridícula e digna de melhor causa. Melhor causa que pode ser, para o pensamento pós moderno, a crescente valorização do prazer, do corpo, do hedonismo, do gozo estético...
Também esse pós modernismo está exatamente nas antípodas da EL. Essa tem em si mesma toda a característica de ser uma espírito irmão do pensamento moderno; e não é que ela seja assim por ocidentalismo e por modernismo, mas por herança bíblica, por imitação do Jesus histórico. É, em todo caso, isso sim, um pensamento forte, seguro de si mesmo, com um grande relato (o projeto de Deus, a Causa de Jesus, o Reino!). Por isso, não se pode suportar facilmente o pensamento light do entorno pós moderno. Diríamos que em princípio não se pode ser ao mesmo tempo pós moderno e espiritual da libertação. Como, então, viver e pregar hoje a EL?
A pergunta não é somente com relação a EL, mas ao cristianismo todo porque é o cristianismo inteiro que é um grande relato, “um pensamento forte e uma estrutura lógica de alguma maneira “moderna” (também aqui: não por influência moderna, mas por herança bíblica; talvez o modernismo seja devedor do cristianismo – através do qual teria bebido do pensamento histórico bíblico – e não o contrário).

 
3. “Destradicionalização”, relativismo e cepticismo.

 
Desde um campo menos filosófico e mais sociológico e cultural, um novo fenômeno que analistas e sociólogos, como Giddens, chamam de “destradicionalização” vem aprofundar o mesmo estado de coisas que o pós modernismo produz, acrescentando-se novos e mais abrangentes elementos de relativismo e cepticismo cultural.
O mundo se mundializou e hoje já todos existimos uns junto com todos os outros pelo bombardeio permanente dos meios de comunicação social, ainda antes que viajemos e caminhemos fisicamente ao encontro dos outros. Hoje, e já desde crianças, observamos, e as culturas, religiões, tradições, folclore, rituais de todos os povos da Terra estão muito perto de nós. E, ao observar todas essas tradições, torna-se inevitável a comparação com as nossas próprias. A partir desse momento, vamos compreendendo cada uma delas como “umas a mais” entre as muitas que existem na Humanidade, e assim vamos deixando de considerá-las como reflexos da objetividade do real para passar a considerá-las, por nós mesmos, como simples tradições, como construções humanas, queridas e muito nossas, mas despojadas agora desta auréola de justificação que dá o fato de considerá-las em referência a uma ordem objetiva universal indiscutível.
Nesta vizinhança universal exigida, a que nos submete a mundialização diante dos povos, culturas e religiões do planeta, o “sentido da vida” deixa de ser para nós (para cada povo, para cada sociedade) “o sentido”, passando a ser “um sentido”, um sentido mais entre outros, o sentido concreto em que nós nascemos, o sentido que nos foi dado (ou que construímos). Já não podemos desconhecer que há outros sentidos, e um incontido instinto de realismo nos diz que nenhum deles pode pretender ser “o” sentido, “o único” sentido.
O problema é que, quando o sentido da vida humana é assim descoberto como construção humana, deixa de ser sentido, deixa de ter sentido. As gerações jovens se incorporam à sociedade de um modo essencialmente diferente do modo em que nos iniciamos as 800 gerações anteriores; eles já não nascem nem entram em uma cosmovisão tida como objetiva, certa e indiscutível, mas em um mundo que sabem ser desprovido de toda pretensão de absoluto, de objetividade e de universalidade, carregado de relativismo e também de humildade. Humildade que em muitos casos não é fácil deslindar de um cepticismo latente ou declarado com respeito à existência de uma ordem objetiva, segura e indiscutível.
Assim, o resultado final converge com os enfoques deletérios do pós-modernismo: já não há grandes valores seguros, nem “grandes relatos” que possam se apresentar para nós, nem causas pelas quais valha a pena viver (e morrer! Camus dizia que as grandes causas pelas quais vale a pena viver são precisamente aquelas pelas quais vale a pena também morrer). Para uma sociedade “destradicionalizada”, já não existem verdadeiramente essas causas, pois elas não são mais que “construções humanas de sentido”, às quais não se quer renunciar para não perder o gozo que proporcionam e para não ficar despidos ante a falta de sentido da vida, - mas às quais tampouco se pode prestar uma adesão vital, cordial, apaixonada, já que tudo nessa “destradicionalização” aparece como sem profundidade, desprovido de consistência objetiva e reduzido à “ilusão de sentido” na qual consiste a vida humana. O relativismo e o cepticismo espreitam de perto.
Essa é, sem dúvida, uma cosmovisão nova, que, para nós que nascemos e nos configuramos como adultos em uma sociedade de tradições fortes, é difícil captar, mas é uma cosmovisão emergente nas novas gerações, que está formando um homem e uma mulher realmente novos, bem diferentes dos “tradicionais”.
A EL é um pensamento forte, um espírito convencido e entusiasmado, uma paixão consciente do que vive e enamorada de Causas pelas quais vive e está disposta a morrer, apoiada na grande tradição de Jesus à qual se remete, reivindicando precisamente sua fidelidade e sua imediata proximidade. As gerações jovens -e todos os que de alguma maneira entraram nesta “destradicionalização”– não vão poder assimilar a EL se não ajudamos a fazer uma acomodação de categorias e uma releitura da EL em diálogo com esta nova cultura geracional emergente.
Separadamente, –como logo veremos- resta-nos refletir hermeneuticamente na possibilidade de ser crente “destradicionalizado”, como em outros momentos estudamos a possibilidade de ser “crente a- religioso”, categorias todas elas aparentemente contraditórias, mas carregadas de possibilidades em sua aparente impossibilidade.
Tudo isso não é algo que ocorre particularmente com a EL, mas com toda espiritualidade e crença religiosa.

 
4. Hegemonia neo-liberal conservadora

 
É desnecessário insistir no evidente: a direita, o capital, os poderosos levam a hegemonia neste mundo atual. Costuma-se dizer de muitas maneiras: o neoliberalismo triunfou, estamos em uma revolução da direita, tivemos nestes anos uma avalancha do capital contra o trabalho: A “globalização” financeira mundial, o domínio e o controle que o capital conseguiu articular a nível planetário, até se mover sem qualquer restrição ou imposição tributária e até chegar a ter mais poder que qualquer entidade política ou de outro gênero, seria a expressão simbólica e ao mesmo tempo efetiva desta hegemonia das classes poderosas e endinheiradas.
Não é que somente as idéias socialistas – ou ao menos socializantes – estejam em declínio ou tenham menos adeptos, mas, na opinião pública dominante – a controlada pela classe dominante, a que se expressa pelos grandes meios de comunicação massiva- estão desprestigiadas e com freqüência satanizadas. Em muitas ocasiões, os mesmos setores populares pobres reproduzem esse “pensamento único”, dominante, hegemônico, de um modo a-crítico e ingênuo, freirianamente introjetado como por osmose pelo ambiente. Não é preciso ser marxista para recordar aquelas palavras do Manifesto: “As idéias dominantes de cada época foram sempre as idéias dominantes da classe governante”. Não é diferente do que está acontecendo agora.
Não cabe dúvida de que uma “hegemonia” dos poderosos e ricos, na cultura e na opinião pública da sociedade, é um ambiente negativo, de dificuldade acrescentada à dificuldade que a EL carrega em si mesma. Os pobres e seus interesses, com os quais a EL se identifica, são interesses secundários, inclusive antagônicos numa sociedade sob o influxo de tal hegemonia. Os pobres estão excluídos de todo o protagonismo. Corresponde a eles somente deixar-se levar por aqueles que estão capacitados para conduzir a sociedade. Os pobres só podem ser objeto (de misericórdia, de beneficência), mas não sujeitos de sua própria história. Os que cometem a loucura de apostar (optar) pelos pobres optam também por ficar fora do protagonismo da história, que corresponde aos que detêm a hegemonia ou pactuam com ela.
É mais difícil assimilar e viver a EL nestes tempos da atual hegemonia neoliberal, conservadora e de direitas, do que na sociedade latinoamericana de trinta anos atrás. Apesar das ditaduras militares e da repressão, toda ela era um clamor pela justiça, pelas reivindicações sociais, pelas transformações revolucionárias... Esse clamor pela justiça era detentor da “hegemonia” dos pobres na sociedade de então. Abraçar a EL naquela hora não era uma decisão contrária à marcha da sociedade, mas algo que gozava da plausibilidade social mais alta e da aceitação coletiva mais profunda. Hoje sucede o contrário, e a EL não pode ignorar isso.

 
5. Depressão psicossocial

 
As sociedades têm também sua psicologia. Por mais que nos pareça que somos autônomos e independentes em nossa vida, somos também membros da sociedade e participamos inevitavelmente de seus estados de espírito, altos ou baixos, sãos ou enfermos, que nos afetam, de um modo ou de outro, com maior ou menor intensidade.
Em outro lugar, sustentei que, concretamente na América Latina dos anos 90, e olhando para ela do lado dos interesses dos pobres, podemos descobrir que entramos há algum tempo numa “noite escura” que, psicologicamente, pode ser explicada, dentro das hipóteses da psicologia condutivista, como depressão. Nossa sociedade latinoamericana, como resultado da crise da passagem dos 80 aos 90 – que culminou numa trabalhada história de várias décadas de luta e conflito, de heroísmo e martírio, de esperanças e fracassos -, entrou em uma etapa de depressão psicológica em muitos setores populares que até então haviam levado o peso da militância e da esperança. Todos os sintomas coletivos evocam a mesma síndrome de depressão individual, com um claro paralelismo. É algo que tratei de mostrar em meu livro “Aunque es de noche”.
A EL tem que ser consciente de que ela é contrária a uma depressão psicológica. A EL é paixão, força, criatividade, energia, enamoramento, vida e luta pela causa, tenacidade (“teimosia”)... e há de saber, portanto, que em uma situação de depressão coletiva psicossocial, o sujeito social mesmo –e em cada caso também talvez o sujeito individual– está impossibilitado de viver essa espiritualidade com esse espírito.
Será que a EL não é possível em nossa sociedade? Não diria tanto. E a prova dessa possibilidade é que ela existe, nós a apalpamos, há muitos setores que a proclamam e por ela se sentem inspirados e transformados. Direi, no entanto, que numa sociedade na qual essa síndrome depressiva aparece, a EL será duplamente difícil; e deverá contar sempre com essa dificuldade a mais. Talvez deva, inclusive, encontrar formas “light”, ou seja alimento de criança para aqueles que não agüentam o alimento adulto, mas que estão dispostos a responder, a seu modo, ao chamado da esperança, “mesmo que seja noite”.

 
6. A animosidade da instituição eclesiástica.

 
A estas alturas da história, e após as últimas décadas, talvez já não cause espanto – como se isso pudesse ter acontecido em outros tempos - a afirmação de que uma das patologias próprias da Igreja católica é o tema do poder e de sua relação com o carisma, com a profecia, com o compromisso criativo com a libertação dos pobres. Os interesses da instituição não somente são muito poderosos por serem próprios de uma entidade internacional de tal envergadura, mas pela própria estruturação da desigual distribuição jurídica (canônica) do poder dentro da comunidade cristã. A história da igreja católica é uma trabalhada história de repressão contra todos os brotos proféticos que surgem em seu seio. Existe um rosto oculto do cristianismo na história dos movimentos proféticos de compromisso com os pobres, de diálogo com a vanguarda profética da sociedade, sufocados e reprimidos pela autoridade eclesiástica, como o deus grego que devora seus próprios filhos, aqueles que mais poderiam devolver-lhe a vitalidade e a criatividade perdida.
A TL e a EL se inscrevem nessa corrente profética que atravessa toda a história. Foram o broto profético que na segunda metade do século XX levou mais à frente a renovação do cristianismo, o diálogo com a modernidade (da primeira e da segunda ilustração), a volta a suas origens proféticas mais primitivas de compromisso com a justiça e com os pobres. Enquadrada no movimento de reconciliação da Igreja católica com o mundo contemporâneo, depois da primavera iniciada com o Concílio Vaticano II, imediatamente a esperança foi abortada com o movimento de involução que implementou o cardeal Wojtila, dirigente do grupo de oposição (coetus minor) derrotado no Concílio, quando foi nomeado Papa, ajudado pelo teólogo José Ratzinger, que por sua vez modificou profundamente a primeira orientação de sua teologia. A TL e a EL foram atacadas frontalmente – com um afã e persistência digna de melhor causa – mediante a perseguição de agentes de pastoral, o pretendido esquecimento dos mártires, a censura e o silenciamento dos teólogos, a destituição autoritária de autoridades (CLAR, congregações religiosas...), a imposição ao povo de Deus de bispos numa linha conservadora radical em sistemática desestima da própria voz desse mesmo Povo de Deus, a desvalorização progressiva das conferências episcopais até o sufocamento da grande tradição da Igreja latinoamericana, construída em Medellin e Puebla e bloqueada na imposição metodológica de Santo Domingo e no centralismo emudecedor do Sínodo para a América em Roma...
Falou-se da Igreja como sociedade “disfuncional”, enferma, carregada de medo e carente de coragem para dar respostas novas e criativas que concretamente nestas décadas já não resolve os problemas, mas simplesmente os prorroga, repetindo respostas que provavelmente não os resolvem.
Neste contexto tão conhecido, e tão poucas vezes tematizado serenamente –como efeito mesmo do que descrevemos- a TL e a EL hão de saber, sabem que, ainda dentro da Igreja, estão em terra estranha, exiladas, clandestinas e perseguidas. Vencidas, mas não convencidas... Este é um desafio real, muito concreto, muito doloroso, quase nunca tematizado. E a pergunta é: como fazer teologia e como viver a EL no seio de uma Igreja que a persegue e que se mostra radicalmente incapacitada para dialogar? Talvez, precisamente por amor à Igreja, a TL e a EL não tenham elaborado praticamente o tema da contenda, a análise desta situação disfuncional e anômala que atravessamos. Mas, sem dúvida, é uma de suas tarefas pendentes e inclusive urgentes, tanto por motivos evangelizadores e missionários, como em atenção a tantos cristãos e cristãs que vivem sinceramente o cristianismo a partir desta ótica libertadora tão genuinamente evangélica e se acham gravemente desconcertados e decepcionados.

 
7. As suspeitas confirmadas.

 
A crise do marxismo fez com que alguns esquecessem muito precipitadamente desenvolvimentos elementares da sociologia da religião que já possuíamos pacificamente.
Não é preciso reviver qualquer extremismo ideológico para se fazer consciente do que já pertence ao acervo popular: a religião sempre tem, ineludivelmente, uma dimensão social e política. Desempenha um papel na sociedade, não pode deixar de desempenhá-lo e tampouco pode subtrair-se ao influxo social, nem pode deixar de ser requisitada pela sociedade para cumprir um papel que atenda os interesses dos que o reclamam.
O quadro atual que os diversos fenômenos da religiosidade compõem se presta facilmente a uma interpretação das diversas funções sociais cumpridas pelos movimentos religiosos maioritários. Um comentarista tão alheio aos interesses eclesiásticos e aos dos pobres e aos da TL, como Huntigton, professor de Harward, apresentado como expert em transformações mundiais, sustenta a tese de que a religião conservadora e fundamentalista é, paradoxicamente, a que melhor se adapta ao mundo moderno da globalização.
A modernidade, diz, está chegando já à prática totalidade do planeta, não quanto do desenvolvimento humano, lamentavelmente, mas nas estruturas de dominação que se fazem presentes em toda parte. Não poucas religiões tentaram um diálogo com a modernidade a nível profundo, com meritórias tentativas de aggionamento e reformulação. Mas – diz Huntigton – os resultados não foram favoráveis, e sim perturbadores e desestabilizadores para as grandes religiões como instituições mundiais. Ao contrário, a religiosidade fundamentalista é a que está se revelando como mais conjugável com a modernidade mundializada. Esta religiosidade aceita a modernidade em seus sucessos científico-técnicos e em sua eficácia produtiva, assim como no jogo democrático representativo, já que compatibiliza e combina essa aceitação com uma interpretação fundamentalista clássica, que se nega a toda hermenêutica atualizadora e reafirma o mais tradicional, oferecendo orientação, tranqüilidade, segurança dogmática. Isto é, aceita os sucessos da modernidade, mantendo as vantagens da tradição.
Definitivamente, o fundamentalismo é a religião do presente neoliberal porque é a que melhor resolve as necessidades dos indivíduos submetidos aos traumas da modernidade, já que deixa passagem inteiramente livre para a economia neoliberal de livre mercado, interesse supremo do capital e dos grandes deste mundo. Assim, Huntigton, a quem se pode acusar de qualquer coisa, menos de propensão ao marxismo, interpreta para nós o papel da religiosidade no atual quadro da modernidade neoliberal com base em sua funcionalidade para com o sistema.
É evidente que a TL e a EL são disfuncionais ao sistema. Não somente porque supõem um diálogo em profundidade com a modernidade, que reinterpreta a religião mesma e produz, não poucas vezes, insegurança e desestabilização, mas também porque representam e fazem seus os interesses dos pobres em seu tríplice caráter de sujeito coletivo, conflitivo e alternativo. Tudo isso, realmente, não é nada novo; mas em um tempo em que a hegemonia silencia esses aspectos, é bom recordá-los e retomá-los.
A TL e a EL são uma peça de discórdia e conflito na engrenagem do sistema socioeconômico e, também aqui, poderão sair na frente, somente na contramão, “desde o reverso da história”, “com os pobres da terra” e com o “pequeno resto de Israel”, que possa se manter a salvo dos movimentos de massa bem controlados pelo sistema. A EL há de saber que tem diante de si, em contra, todo o sistema da globalização e que só será tolerada enquanto esteja calada. Quando a influência de sua denúncia exceder os limites toleráveis pelo sistema, voltarão a perseguição e o sangue até o martírio. Há de saber também que essa hegemonia neoliberal atravessa a Igreja e que também nela coloca todos os ventos contra os que defendem o Reino de Deus entendido como boa nova para os pobres. É tempo de exílio- na Igreja e no mundo- além de ser permanentemente tempo de êxodo. Hoje, mais que nunca, temos que ser conscientes de que o Senhor não nos chama ao triunfo histórico, mas escatológico...

 
8. O desafio do pluralismo

 
Sempre houve na humanidade pluralidade de religiões. O que não houve é o pluralismo, aquele que começa quando as religiões travam contato (em vez de se ignorarem) e estabelecem alguma forma de reconhecimento mútuo e, eventualmente, de colaboração. É uma realidade inevitável num mundo crescentemente unificado como atual. O diálogo, a mútua influência entre as religiões começou já de fato e está em curso na arena da vida religiosa da humanidade, ainda antes dos diálogos oficiais das cúpulas de diferentes religiões.
Por sua parte, o tema teológico do pluralismo religioso é reconhecidamente novo, pois “surgiu no tempo de vida da presente geração” (Hick); no entanto, alcançou um desenvolvimento notável sobretudo no mundo anglo saxão. Atualmente está invadindo- é uma verdadeira irrupção- o campo latino e está fazendo sentir seu desafio em todos os tratados teológicos (sobretudo na cristologia e na eclesiologia), assim como na liturgia, na linguagem, nas categorias... que foram criadas em um modelo exclusivista e ignorante da existência de outras religiões, e que exigem agora que sejam reformulados e adaptados às novas coordenadas.
Há grandes temas mais concretos, ainda que transversais, que experimentaram já uma revisão mais profunda: a própria concepção de revelação, a missão evangelizadora e missionária, a “eleição” do “povo de Deus”...
Também a TL e EL hão de enfrentar este desafio. Não podemos pedir que tenham antecipado tudo isto. Vão resistir muito dignamente ao desafio, mas em todo caso, certamente, devem enfrentá-lo, desenvolvendo ulteriores proposições. Concretamente o macroecumenismo da EL, se bem que em boa parte se tenha antecipado aos questionamentos atuais, pode sem dúvida dar um passo adiante em diálogo com tudo que se elaborou nestes últimos anos em torno deste tema do diálogo religioso.
Podemos dizer sem dúvida que o diálogo e o pluralismo religiosos são “um novo paradigma”, um novo esquema de pensamento, um salto qualitativo com o qual todo o universo do pensamento cristão está desafiado a concordar. Até onde nos levará...? É difícil prever, mas aqui temos já, para este início de terceiro milênio, uma tarefa coletiva nova, inexplorada, que, sem dúvida, vai ser apaixonante.
Quero destacar a chamada de atenção que há algum tempo Paul Knitter - um dos mais destacados teóricos dos questionamentos pluralistas - fez sobre a necessidade de que os teólogos do pluralismo religioso dialoguem com os teólogos da libertação. O “novo paradigma” do pluralismo religioso não vai significar uma abandono da TL e da EL. Ao contrário, vai pedir que o cristianismo traga ao diálogo inter-religioso o mais nuclear de si mesmo, o que constitui a própria essência do cristianismo, e, nesse campo, ninguém como a TL e a EL tem conseguido se remeter ao mais primitivo da herança bíblica e judeu-cristã. A TL e a EL não vão ser substituídas pela teologia do diálogo religioso, mas vão ser nele continuadas e continuadamente convocadas a se incorporar ao diálogo. O caminho prossegue.


9. A crise epocal.
Podemos assim chamar a uma crise mais ampla, mais de fundo, mais profunda e mais embaixo de tudo que acabamos de dizer, como uma crise que afeta os cimentos de todo o edifício. Martin Buber a chama de “eclipse de Deus”, lembrando-nos a expressão “Deus está morto” de Nietzsche. Juan Bautista Metz a chamou de “crise de Deus”, considerando-a o “fato nuclear” que está repercutindo na configuração da pessoa humana moderna. Os traços desta crise de religiosidade atual foram prodigamente descritos pelos comentaristas e sociólogos e não vamos repeti-los aqui.
Na prática, na Europa e na América do Norte, a gravidade da situação adquire níveis dramáticos. Claude Imbert, diretor de “Le Point” fala do “desmoronamento do universo cristão”. E. Poulat fala de uma “era pós-cristã”, de uma lenta “evaporação do sistema cristão” ou de uma “crise espetacular” que as Igrejas – sobretudo a católica – estão atravessando hoje em dia, e da distância considerável que existe entre a Igreja solenemente convocada por João Paulo II para o jubileu e aquela que cada dia os sociólogos da religião quantificam e analisam. Os números, com efeito, confirmam esta interpretação: nos Países Baixos, por exemplo, no Centro da Europa, a percentagem dos cidadãos que têm ensino superior e declaram não formar parte de nenhuma Igreja passou de 44% em 1970 para 66% atualmente. Se dermos crédito a um estudo recente, 75% dos holandeses estarão fora de qualquer Igreja em 2010. A prática dominical continua em baixa contínua em todos os países europeus, e o catolicismo alemão perde concretamente cada ano cerca de duzentos mil fiéis. Na católica Espanha, José Maria Mardones afirma que “em dez anos, os efetivos eclesiais estarão dizimados, algumas instituições religiosas e dioceses praticamente desaparecerão”, e acrescenta: “o pior é que já não há possibilidades de reagir criativamente, cabem apenas medidas reativas e de defesa: fazer uma retirada ordenada e inteligente, com o menor custo possível.
Não pensemos muito precipitadamente em nosso Continente na hora de resolver a crise primeiromundista, porque a Igreja católica do Brasil perde anualmente mais de 500 mil fiéis, que emigram para as Igreja evangélicas e para novos movimentos religiosos (Lupeau – Michel). No mesmo Brasil, 70% das celebrações dominicais se realizam sem a presença de ministro ordenado.
É lógico que, numa situação assim, a Igreja católica registre as reações típicas das instituições em perigo ou em crise de esperança, como aquelas às quais aludimos no item 6. É um círculo vicioso que esperamos que seja logo quebrado.
É lógico que, a EL, ao ser uma espiritualidade voltada para o mundo, reinocêntrica, não esteja espontaneamente inclinada a se ocupar do intraeclesiástico. A isso acrescenta-se um sentimento como de pudor e de pena; preferiríamos que tudo isso não fosse realidade e, por ser desagradável, tende-se a pensar que é melhor construir positivamente o Reino fora do que discutir a problemática interna dentro...
Mas toda essa situação de mal estar e de desconforto é algo cujo enfrentamento a TL e a EL não podem continuar adiando. Os muitos cristãos e cristãs desorientados e decepcionados merecem uma palavra. A gravidade da situação também merece uma abordagem urgente, humilde, mas nada tímida. A libertação integral que a TL e a EL proclamam inclui a libertação da desesperança e da crise de futuro que esta situação está gerando.

 
10. Um novo tempo axial?

 
Dispostos a ir até o fundo na análise da crise em curso, devemos tomar consciência das múltiplas vozes que repetem uma e outra vez que estamos em uma “mudança de época”, muito mais profunda do que se poderia imaginar. Cada vez é mais freqüente a lembrança da mutação civilizacional que Jaspers denominou de “mudança do tempo eixo”, que abarcou aproximadamente uns 500 anos, entre 800 e 200 A.C., e que introduziu na consciência humana uma ruptura radical, a partir da qual se operou uma profunda inflexão no curso da história e da civilização tal como as conhecemos hoje em dia (Carlos Palacio).
A secularização, entendida como esse processo que começou na idade moderna, não é a causa última da crise que experimentamos. Para Pánikar, a secularidade atual indicaria que “o passado período de 6.000 anos está sendo substituído progressivamente por outras formas de consciência. No meu entender, a consciência histórica, ou o mito da história, começou a ser substituído Kairologicamente (não cronologicamente) pela consciência transhistórica. Talvez estejamos enfrentando outro “período axial”.
Tudo parece abonar a hipótese de que nossa época está vivendo uma mudança religiosa que não se esgota na reelaboração da tradição, como ocorreu permanentemente ao longo da história religiosa da humanidade, mas que autorizaria a afirmação de que se trata de uma mudança no próprio horizonte em que se inscrevem as tradições e no sentido que lhes é atribuído. Isto é, forçaria a reconhecer uma verdadeira “metamorfose do sagrado” (J. Martin Velasco).
Acontece uma crise das crenças, uma progressiva emancipação dos crentes com respeito à ortodoxia vigente nas Igrejas, abandonam-se as práticas religiosas, distanciam-se os fiéis da moral oficial, dilui-se o sentimento de ser propriedade da instituição, produz-se uma regulagem individual do sistema religioso (uma “religião de escolha”)... A crise da religião nos países ocidentais de tradição cristã é um fato unanimemente reconhecido. E, afortunadamente, cada vez se é mais consciente da envergadura e da profundidade epocal que a crise tem...
A crise é, então, maior e mais profunda do que se poderia imaginar à primeira vista. Não é nossa, não é da TL e da EL. Transborda inteiramente, é impossível abarcá-la. Nós a sofremos, estamos no meio dela, como ocorre com todos os outros. Convém sermos conscientes disso para não desanimar nem culpabilizar-nos indevidamente. A própria crise precisa de ser sistematizada como um novo Kairós moderno, uma oportunidade de reformular, de reinterpretar, de recriar inclusive toda a religiosidade em diálogo com a situação do homem e da mulher modernos. A TL e a EL, em vez de maldizer a escuridão da crise, hão de colaborar para acender uma luz.
Perguntamo-nos: será que a TL e a EL, com o que significaram no momento de sua irrupção na terceira parte do século XX, eram precisamente uma tentativa positiva e original de recriação (“refundação” é o nome usado agora) do cristianismo, que respondia a essa necessidade epocal de repensar tudo de cima até embaixo? Acreditamos que sim, acreditamos que, apesar de perseguidas e difamadas, a EL e a TL serão os pontos mais avançados do cristianismo, que ajudarão a atravessar a crise com credibilidade e com criatividade.

 
Questões para ajudar a Leitura individual ou o Debate na Comunidade religiosa o na Comunidade cristã.

 
1. A Vida Religiosa latino-americana e as CEBs têm sido os sujeitos coletivos a quem a Espiritualidade da Libertação mais deve. Por sua própria natureza de experiência forte de Deus, de seguimento de Jesus em radicalidade, de liberdade diante da estrutura hierárquica do poder, procurou libertar-se para se deixar impulsionar pela profecia e pela solidariedade com os oprimidos.
Como esta hoje a vida religiosa a respeito da EL? Continua sendo um sujeito coletivo que a apóia? Sai a vida religiosa em defesa da opção pelos pobres, na defesa das perspectivas liberadoras? Onde está hoje maioritariamente a vida religiosa em seu compromisso com os pobres e excluidos: alentando a libertação ou a resignação, com o asistencialismo da promoção humana ou com os projetos liberadores, consolando ou conscientizando…?
2. (A respeito especialmente do ponto 6, a situação eclesial). Qual é realmente a situação da Igreja como comunidade humana e cristã hoje em dia, com relação à liberdade, com relação aos direitos humanos dentro dela, a participação comunitária em sua gestão, a situação da mulher?
Como qualificar a posição atual dos religiosos e das comunidades cristãs diante desses problemas: ausência, participação no sofrimento, denúncia profética, ajuda positiva (ainda que inevitavelmente conflitiva) para fazer a Igreja avançar, inibição, voz dos que não têm voz, compromisso militante contra qualquer tipo de opressão dentro da Igreja?
3. Por baixo da aparente crise de simples cansaço, apatia ou depressão, as águas estão se movendo profunda e vertiginosamente. O tema do diálogo interreligioso e do pluralismo religioso irromperam com toda força no cenário mundial das religiões. Está em curso por outra parte uma crise de fundo de dimensões epocais. Muitas coisas do velho mundo que morre clamam por uma reformulação criativa, uma recriação original que as torne aptas para dialogar com o mundo novo que ainda não acabou de nascer.
Como estamos como religiosos/as, “especialistas em Deus” no dizer de Paulo VI, e as comunidades cristãs de vanguardia, diante de todos estes desafios da espiritualidade da libertação? Temos lido ou ouvido falar em nossa comunidade da renovada opção pelos pobres em contexto neoliberal? da teologia do pluralismo religioso? Quanto temos estudado ou simplesmente escutado sobre a metamorfose atual do religioso em comparação com a crise do “tempo axial” que Jaspers situa no século VII A.C.? São temas que estão na agenda de nossa formação permanente, pessoal ou comunitária? Que preocupação lhe dedicam nossas congregações como entidades globalmente responsáveis? As congregações que se dizem missionárias estão preocupadas em estudar e enfrentar estes fenômenos que indicam como será o futuro, ou estão simplesmente tapando os buracos de um sistema já decadente, destinado a morrer?


José Maria Vigil

Fonte: http://servicioskoinonia.org/

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