domingo, 21 de agosto de 2011

TdL em Mutirão 11

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO: REFLEXÃO TEOLÓGICA NECESSÁRIA



Hoje quando se olha para o passado recente de nossa história no Brasil e na América Latina, dentro e fora da Igreja, não é possível desconsiderar a forte presença da Teologia da Libertação (TdL). Ela floresceu no fértil terreno das lutas emancipatórias latino-americanas. No acirramento entre as duas formas de organização política, capitalista e comunista, a TdL edificou um pensamento compreensível às massa pobres do nosso continente, desde suas raízes culturais, religiosas e políticas. Não caminhou à parte da história, mas dentro dela e num contexto preciso: o dos empobrecidos latino-americanos. Desta realidade, seu discurso teológico será capaz de ser a um só tempo, intrinsecamente, social e religioso. Isto lhe conferiu, no bojo da modernidade crítica à religião, à fé, à experiência religiosa e, em muitos casos, rigorosamente anti-transcendente, ser um fato social e eclesial(1). Na dimensão social encarnou todas as forças de libertação de inspiração cristã, porém sendo muito mais um fato eclesial, despertando a consciência da Igreja para o objeto de sua reflexão, servindo, assim, a comunidade e a pastoral(2).



Os críticos da TdL, contudo, vendo nela mais o fato social do que o eclesial sempre olharam com reticências para a mesma. Até a identificaram-no com um momento histórico e ideológico, restringindo seu alcance a algumas décadas do século XX, com o fim de sua relevância e atuação com a queda do Muro de Berlim. Certamente, como todo pensamento e teologia desdobrada na história, a TdL é marcada pelos traços genéticos de sua origem. Todavia, sua originalidade e inspiração desborda o seu próprio tempo. Limitá-la aos fatos sociais de onde ela surge é não compreendê-la. Mais do que a análise crítica do capitalismo ou sua proximidade com o socialismo em função dos valores evangélicos, caracteriza a TdL o seu método(3), sua interpretação, a partir do empobrecidos. E mesmo aqui, se faz necessário dizer, o seu discurso de libertação não se confunde com a mera superação de problemas sociais crônicos(4). Talvez lembrando as palavras de Jesus, sem querer arrancá-las de seu contexto, sentido, de que "sempre tereis pobres convosco...” (Jo 12, 8), possamos entender que o cuidado com eles na correta ligação com o próprio Jesus, comporta dimensões maiores para o compromisso cristão, se este quer ser também libertado dos perigos de não perceber a pobreza que perpassa as várias facetas da humanidade, necessitada da abundância oferecida pela vida de Jesus (Jo 10, 10). Sim, pobres sempre teremos, e temos a necessidade de uma teologia capaz de oferecer sua crítica à desigualdade que gera pobreza em todos os níveis da vida humana.



Enquanto fato social e, sobretudo, eclesial, a TdL não termina sua vida nos recentes acontecimentos. A trilha aberta permanece. Se não se tem os mesmos entusiasmos de outrora, segue a perspectiva construída em plena validade. Apesar dos movimentos adversos, o jeito de fazer teologia na América Latina foi profundamente influenciado pelas coordenadas desta teologia. Sob o aspecto social a TdL, no âmbito prático e teórico explicita o ser da teologia enquanto pensar não desvinculado do mundo no qual se localiza, levando em consideração o problema da injustiça numa sociedade de explorados. Eclesialmente, torna-se uma teologia com o diferencial de se tornar mediação na interlocução dos fiéis com o mundo a partir da fé. Desta forma, os dados da revelação se tornam mensagem direta para a vida em sociedade, questionando as estruturas sociais e pessoais de pecado. Com isso, rompe com o aparente abismo existente entre o discurso da fé e a vida e torna-se crítica rigorosa a todo tipo de realidade contrária ao Reino de Deus, como instância norteadora do processo teológico, nunca esgotado pelo mesmo fazer teológico.



E como não é uma teologia que se possa considerar morta e nem tão pouco acabada em suas dimensões estruturais e temáticas, ligada à dinamicidade do próprio social, é que a TdL, a partir de seu profundo ponto de partida eclesial, mostra-se viva, auspiciosa, atenta não aos pruridos das novidades, mas aos problemas candentes dos últimos anos. Será nesse sentido, que Gustavo Gutiérrez, na introdução à décima quarta edição, do seu Teologia da Libertação, chamará atenção para a maturação da TdL. Segundo o autor, há uma ampliação do espaço reflexivo para esta teologia. Isso tudo leva à melhor percepção do essencial com a perca da relevância do que é acessório(5). Soma-se ao fato as contribuições vindas de outras confissões cristãs no âmbito da libertação, e ainda o esforço de uma TdL para além dos muros cristãos nas confissões de fé judaicas e mulçumanas(6). Nesta última situação, temos tanto o ecumenismo como o diálogo inter-religioso.



Observe-se, porém, que, aberta aos sinais dos tempos, às novas perspectivas, TdL manterá a herança inegociável da opção pelos pobres(7). O lugar social deles é sempre referência inolvidável para esta teologia. Mais: os pobres não são só destinatários e objetos da reflexão teológica, mas para que ela alcance seu objetivo real, a libertação como processo, não oferecido, mas protaganizado pelos oprimidos, precisa ser também reflexão consciente dos mesmos. Ora, sob este aspecto, a emblemática contribuição freiriana, de que ninguém liberta ninguém nem ninguém se liberta sozinho, mas nos libertamos em comunhão, é fundamental(8). A libertação é dialógica e não um monólogo. Por isso, não ser somente teologia clerical é um dos grandes desafios para a TdL(9). E se chega a ser teologia dos pobres, do Povo de Deus em marcha constante para a edificação do Reino, embora imperfeito na nossa caminhada terrena, essa teologia expressa coerentemente seu perfil eclesial, inserindo os crentes, enraizados na fé, na crença no Deus da Vida, nos complexos movimentos sociais, manifestando, assim, sua correta caracterização social. Isto quer dizer que o engajamento social é fruto direto da experiência de Deus, e de modo cristão como mergulho no mistério da encarnação enquanto sentido redentor e libertador para toda a humanidade.



Isso não significa atribuir maior importância a TdL do que a outras formas de teologia. Tal colocação nos permite afirmar sua validade como pensamento teológico. O seu lugar na história da teologia está ligado à sua contribuição peculiar de como trabalhar os dados da fé. Sua vida é riqueza para a Igreja, uma contribuição para as razões da fé vivida no embate cotidiano, sobretudo nos conflitivos. Sua vocação social explícita(10) nos leva à demanda de uma teologia crítica, de uma fé crítica das formas de vida. No Evangelho de Mateus, por exemplo, essa forma crítica da fé e do seguimento em Jesus é um pedido do próprio mestre. O Nazareno pede que os seus sejam luz do mundo e sal da terra (Mt 5, 13-16). Isso, por outro lado, só ocorre quando em não conformidade como o mundo se trilha o caminho feliz apontado pelas bem-aventuranças da pobreza evangélica na luta por justiça. Jesus também reza pelos seus, pois estão no mundo, mas não pertencem ao mundo (Jo 17, 9-15)(11). As exigências do Reino e do Amor põem o cristão em confronto com as situações nas quais imperam na vida os sinais do Anti-Reino. Será nesse sentido que o apóstolo Paulo incentivará os cristãos a não estarem acordes com este mundo, mas pede transformação das mentalidades para a construção de uma nova vida, de acordo com a vontade do Pai (Rm 12, 1-2). E em nada disso se apresenta evasão das realidades sociais, mas empenho crítico diante das mesmas para renová-las segundo o desígnio de Deus. Será essa a marca reflexiva constante da TdL e o seu refrão.



A ótica social da TdL é a visão da fé. Dela não se separa e a pressupõe sempre. Todavia, como já expresso aqui, esse viés teológico privilegiará o lugar dos mais fracos e a libertação destes para gerar seus aportes teóricos. Daí sua premência e vigência, sobretudo quando assistimos à perigosa onda de encobrimento da pobreza e do grito dos pobres, em alguns casos cooptados por políticas e programas governamentais dispostos a fazê-los mais consumidores e menos cidadãos. Acompanhamos, o que bem analisou José de Souza Martins, uma nova desigualdade, não possível de ser compreendida pelo conceito de exclusão. Vemos por toda parte uma inclusão marginal, precária e instável(12). Os empobrecidos são enganados ao receberem lugares residuais na sociedade bem como os bens de consumo para a satisfação mimética dos que se refestelam sobre a máquina que constrói a pobreza(13). Não se pode esquecer ainda que, contra a recordação dos empobrecidos, está, em voga, um espiritualismo vazio. Neste, o discurso é marcado por generalidades, terapias espirituais, ascensões mágicas e toda sorte de psicologismos rasteiros. E no discurso eclesiástico oficial, em geral, e quase sempre, as intervenções nos problemas sociais ficaram restritas à problemática do aborto e eutanásia, parecendo ser a única forma de defender a vida. A vida existente, entre o nascer e morrer, anda esquecida.



Ora, posto isto, a não colocação da TdL no primeiro plano dos debates teológicos atuais, até mesmo no seu nascedouro, não implica sua falta de importância nem sua morte, mas um movimento pendular do poder que em momentos de crise se vê posto contra a parede pelos legítimos empreendimentos dos pequenos e suas representações teóricas, simbólicas e práticas, contundo se restabelecendo contra os fracos em outras ocasiões por meio da violência ou mesmo pela suavidade e alegria ideológica. E se não está morta, a TdL dá seus sinais nas brechas do sistema, visto ser expressão não do acessório e sim do essencial cuidado com a vida nos seus setores mais frágeis, como pede o Evangelho. Sua existência se respalda da lídima missão cristã de lembrar e cuidar dos mais débeis a fim de que não só eles sejam salvos, mas também os que oprimem, pela via da conversão pessoal e social. Entretanto, ressalta-se, dentro do mundo marcado por divisões, pela falta de paz e de justiça, a luta pela justiça do lado dos injustiçados é a vertente ética e espiritual profética da TdL. Ela é um bem necessário à teologia e à sua tradição como pensamento. Mais do que conceitos a TdL sempre lembra dos empobrecidos.



Notas:
(1) Ver LIBANIO, J. B. Teologia da Libertação. Roteiro didático para um estudo. São Paulo: Edições Loyola, 1987. pp. 15-36

(2) Op. Cit. pp. 17, 25

(3) BETTO, Frei. "A teologia da libertação ruiu com o Muro de Berlim?” in BETTO, Frei. Cotidiano e Mistério. São Paulo: Olho d’água, 1996. pp. 107

(4) Op. Cit. pp. 108

(5) GUTIÉRREZ, Gustavo. Teologia de la Liberación. Perspectivas. Ediciones Sígueme: Salamanca, 2004, p. 19

(6) Op. Cit. p. 19

(7) TEIXEIRA, Faustino Luiz Couto (Org.). Teologia da Libertação. Novos Desafios. São Paulo: Edições Paulinas, 1991, p. 9. Na apresentação à obra, que é um conjunto de entrevistas, Faustino destaca esse importante ponto da TdL, que se trata de uma constante epistemológica de seu pensamento.

(8) FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005, pp. 58-64

(9) Op. Cit. p. 133. Essa é a percepção de José Comblin em resposta à pergunta de Teixeira sobre os desafios.

(10) Falamos de vocação explícita pelo fato de toda teologia ser social, embora nem todas as formas de teologia explicitem esse caráter.

(11) A compreensão sobre o mundo no Evangelho de João está em conexão com o tipo de mundo construído pela ação inspirada em Deus ou pelas forças do Mal. Por isso, o não pertencer ao mundo não está contra a vida e o criado, mas contra as edificações perversas do mundo enquanto sociedade.

(12) MARTINS, José de Souza. Exclusão Social e a Nova Desigualdade. São Paulo: Paulus, 2003, p.26

(13) Op. Cit. p. 36

Magno Marciete do Nascimento OliveiraPadre, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, doutorando pela mesma instituição e Professor na PUC- Minas

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