O SIGNIFICADO TEOLÓGICO E PASTORAL DA TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO
A Teologia da Libertação é o sinal de um novo momento da História da Igreja na América Latina. Apresenta-se com a originalidade de incluir, como inerente a ela, a situação histórica e a realidade social dos povos latino-americanos. Apresenta-se pela primeira vez, como teologia especificamente latino-americana. Não no sentido de romper de alguma forma a catolicidade de toda autêntica teologia, mas no sentido de uma teologia elaborada a partir das Igrejas da América Latina, que vivem uma situação pastoral comum e original.
Também não é teologia latino-americana no sentido de que sirva somente para este continente. É chamada a levar sua contribuição para toda a Igreja, e de fato já o está fazendo. Seu significado e influência foi captado pelo mais alto magistério. Paulo VI a levou em consideração explicitamente ao desenvolver um dos capítulos centrais da Evangelli Nuntiandi: a evangelização inclui "uma mensagem particularmente vigorosa em nossos dias sobre a libertação" (29). Diz João Paulo II: "A teologia da libertação com frequência está relacionada exclusivamente com a América Latina, mas é preciso reconhecer que é exigência de alcance universal. A função da teologia é achar o verdadeiro significado da libertação nos diferentes e concretos contextos históricos contemporâneos. É parte da verdade chamar por seu nome a injustiça, a exploração do homem pelo homem e pelo Estado, dos mecanismos e sistemas econômicos" (Discurso em Roma, 21.02.1979, ao regressar da América Latina).
A teologia da libertação não pretende esgotar todas as tarefas atuais da teologia do continente, mas acentua uma das mais importantes e urgentes, se não a mais importante e urgente: a reflexão teológica sobre o sentido do compromisso da Igreja e de seus cristãos na justiça, na defesa da dignidade humana, na libertação dos pobres e oprimidos, em ordem à evangelização.
Nesta reflexão eclesial há atualmente várias correntes e acentos, mas entre elas são maiores os consensos, as coincidências e convergências. Ora, para identificar o que há de de comum na teologia da libertação, é necessário diferenciá-la e distingui-la de outras formas de reflexão em torno da libertação, que não são propriamente teológicas, e que são abundantes. Existe a teologia da libertação propriamente dita, que se inscreve numa preocupação de fé e evangelização, como toda teologia católica. E existe a reflexão de cristãos sobre a libertação, num nível mais ideológico, sócio-político, pedagógico ou estratégico... Ambos os níveis de reflexão são necessários para os cristãos que vivem na cidade temporal, mas o segundo não é propriamente teológico, não se constrói em nome da fé e do Evangelho. A confusão está em que para muitos, toda reflexão sobre a libertação - teológica ou não - já é "teologia da libertação". Manifestos, panfletos, documentos de grupos cristãos de conteúdo "libertador"...
A confusão entre ambos os níveis, o dos teólogos da libertação e o dos cristãos que em torno do tema da libertação fazem reflexão primordialmente sócio-política, prejudicou a própria teologia da libertação, fazendo-a objeto de críticas que propriamente não lhe pertencem ou reduzindo-a simplesmente ao nível político, sem suficiente dimensão teológica e pastoral.
Em razão desta confusão - e também por desconhecimento ou falta de discernimento - em alguns setores eclesiais da América Latina a teologia da libertação ainda é "suspeita", com o perigo de se constituir numa espécie de "teologia não oficial", tolerada, ou, pior ainda, meio clandestina. Isso é reforçado pelos centros de poder políticos e econômicos, e pela pressão sistemática que exercem pelos meios de comunicação. Não interessa ao "sistema estabelecido" um catolicismo e um apostolado libertadores, fundamentado numa teologia da libertação. O prejuízo desta situação não recai tanto sobre os teológos da libertação , mas sobre a própria Igreja, e sobre sua missão de comunhão e participação. Acontece que as afirmações fundamentais desta teologia são tão importantes para a Igreja latino-americana e para sua tarefa de evangelização, que é urgente reivindicá-la nos setores onde ainda não foi compreendida. Um pouco ironicamente, diante de muitos presságios que se haviam feito, foi o próprio papa João Paulo II e a Conferência de Puebla que a reivindicaram, purificaram e reintroduziram nos meios eclesiais da América Latina. Nunca houve tanto interesse como agora em nossas Igrejas pela teologia da libertação.
Três maneiras de fazer teologia
A teologia da libertação não aparece no panorama latino-americano como um fato isolado, que nasce de repente. Pertence a uma das formas mais tradicionais de fazer teologia católica.
Sabemos que há três "maneiras" de teologizar ou aprofundar a mensagem da fé. Uma delas denomina a teologia como "sabedoria". É muito antiga. Aparece já no Novo Testamento, nos primeiros escritos cristãos e, através da história, na literatura de muitos santos. Esta teologia é própria do gênero homilético, da reflexão espiritual. Procura fazer da Palavra de Deus alimento real para a vida. Não tem uma pretensão sistemática nem diretamente "científica".
Outra seria a teologia sistemática, "científica" ou ainda dogmática. Esta "maneira" foi adquirindo crescente importância na vida da Igreja até se tornar fortemente predominante nos últimos quatro séculos: ser teólogo era ser "teólogo dogmático". Esta forma de teologia - indispensável - procura o encontro da fé e da razão humana no estudo da Revelação divina. Sistematizada em corpos doutrinais, precisa os alcances da Bíblia e do magistério etc.
Logo em seguida está a que poderíamos chamar de "teologia pastoral". Seu ponto de partida é, em essência, a vida da Igreja, a ação pastoral, o compromisso dos cristãos, a realidade humana na qual a Igreja exerce a sua missão. Neste caso vida e práxis da Igreja é um "lugar teológico", isto é, uma base para que possamos elaborar e refletir sobre a mensagem de Jesus Cristo. Assim sendo, a ação pastoral e a práxis cristã são o "ato primeiro", ao passo que a reflexão teológica é o "ato segundo", que ilumina e reorienta a ação. A teologia da libertação, portanto, situa-se melhor nesta "maneira" de fazer teologia. É uma teologia pastoral.
É necessário entender bem isto. Em primeiro lugar, nenhuma "maneira" de fazer teologia está sozinha, isolada. Todas elas incluem elementos dos três níveis. Na prática, não é fácil classificar a maneira de fazer teologia. Para ser boa teologia católica, nenhum destes três níveis pode prescindir de fazer referência aos demais. A teologia como sabedoria e a teologia pastoral devem apoiar-se sempre nos dados da teologia científica, ainda que não sejam explícitos, e a teologia científica, por sua vez, deve fazer referência permanente à vida espiritual e pastoral, para que não fique à margem da história.
Diz-se que teologia da libertação é uma "nova maneira" de fazer teologia. Deve-se entender muito bem isto, pois, tomando ao pé da letra, é excessivo. Já vimos seu método se inscreve no nível de uma "teologia pastoral" ou de uma "teologia das realidades" em que vivem os cristãos. Neste sentido, poder-se-ia considerá-la como "novidade" em relação a uma teologia que predominou até recentemente, muito abstrata e pouco pastoral. A teologia da libertação reivindica um modo muito tradicional de fazer teologia. E neste sentido, por conseguinte, não é uma "nova maneira", absoluta, porque se insere na melhor tradição teológico-pastoral: dar um conteúdo de fé à "práxis" cristã, neste caso a seu compromisso pela libertação dos oprimidos.
Segundo Galilea - teólogo
Adaptação do livro Teologia da Libertação - Ensaio de Síntese
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